Há alguns anos que eu estava para mostrar este diagrama do Engº Seca Teixeira, então director da Companhia Portuguesa de Produção de Electricidade, uma subsidiária detida então a 100% por uma empresa denominada Electricidade de Portugal que mudou de nome para “Energias de Portugal” em 2004.
O diagrama mostra que o grande caudal de 9270 m3/s do rio Douro que apareceu na sua foz em 27/Dez/2002 foi causado pelas afluências geradas em Portugal com o valor de 8495 m3/s, já que de Espanha vieram apenas nessa altura 775 m3/s. As barragens então existentes estão representadas por rectângulos cinzentos que atravessam os caudais a azul.
Nessa altura no Douro Nacional estavam já concluídas as 5 barragens que ainda hoje existem e que são, na ordem de montante para jusante, Pocinho, Valeira, Régua, Carrapatelo e Crestuma-Lever. No afluente Távora existia ainda a barragem de Vilar e no afluente Tâmega a barragem do Torrão. Se somarmos os caudais dos afluentes do Douro mais o que vem de Espanha (775+1480+1460+2120+100+750+1145+1440) obtemos 9270, concluindo-se assim que a contribuição directa das encostas do rio Douro é insignificante.
Esta abundância de rios selvagens, afluentes do rio Douro em Portugal, documenta o disparate de Miguel Sousa Tavares quando, argumentando contra a construção de barragens no rio Sabor, alegava tratar-se não só do último rio selvagem de Portugal como mesmo da Europa!
Neste artigo do jornal Público intitulado “Sabor abre debate sobre necessidade de reserva estratégica no Douro"
Seca Teixeira afirma:
“... Sempre dissemos que, em relação à cascata de aproveitamentos do Douro, estamos totalmente dependentes da gestão espanhola. Com o Baixo Sabor, que terá uma capacidade de armazenamento útil de 630 hectómetros cúbicos, ficaremos mais independentes…"
depois Pedro Serra, presidente da Comissão de Avaliação do impacte ambiental: "…o sistema electro-produtor tem de produzir na mesma medida dos consumos e o Sabor pode regular a produção, alimentando toda a cascata quando há um pico". A barragem, por si só, tem uma produção reduzida - 150 megawatts - mas "dá garantias para a produção de 700 megawatts ao longo da cascata…"
e ainda Oliveira Fernandes, professor no Departamento de Engenharia Civil da Universidade do Porto:
“...uma das principais vantagens desta barragem será a sua reversibilidade, isto é, a sua capacidade de rebombar água para a albufeira, servindo assim de armazenamento energético. "Pode-se usar a energia produzida pelas eólicas durante a noite, quando não é utilizada, para recarregar a bacia da barragem superior", explica. Ou seja, a energia eólica é "transformada" em água que volta, quando necessário, a ser "transformada" em energia, no caso hídrica.”
Todas estas considerações são muito pertinentes designadamente para avaliar a consistência destas posições com a alegada intenção da EDP de, segundo notícias da imprensa como esta do jornal Expresso, ter colocado à venda a exploração de 6 das centrais hídricas que lhe estão concessionadas, designadamente Miranda, Picote e Bemposta no Douro internacional e ainda Baixo Sabor e Feiticeiro (ambas no rio Sabor) e Foz Tua.
A EDP prescinde assim de controlar os aproveitamentos do Baixo Sabor que lhe permitiam um controlo adicional de quatro centrais de fio-de-água do Douro Nacional, controlo adicional esse que usou para justificar a construção das barragens no rio Sabor.
Ao separar a exploração do Baixo Sabor da exploração das centrais hídricas do Douro Nacional poder-se-á assistir a uma sub-utilização deste conjunto pois o responsável pela bombagem do Baixo Sabor não entrará em consideração com os ganhos económicos potenciais que a EDP poderá obter nas centrais hídricas que alegadamente pretende manter em Portugal.
O mesmo raciocínio se aplica à central de Foz Tua cuja bombagem também influencia não quatro mas três centrais do Douro Nacional.
Acho muito estranho este interesse da EDP em abandonar centrais hídricas que explora em Portugal. Mesmo considerando que é indispensável que as empresas se internacionalizem e que a EDP se endividou em excesso e precisa de alienar património, porque não alienar produções eólicas ou térmicas, que não estão tão firmemente ligadas à geografia de Portugal e à exploração do sistema electroprodutor respectivo, ou mesmo alienar alguns investimentos que fez no estrangeiro para manter a base essencial em Portugal, como costumam fazer as multinacionais cuja empresa mãe se encontra num país desenvolvido.
Esta venda diminui assim a competitividade de Portugal, ao criar uma estrutura de propriedade que dificulta a optimização de um sistema hídrico que seria muito mais eficaz caso permanecesse gerido por uma única entidade. Quem irá pagar esta ineficácia será ou o consumidor ou o contribuinte ou ambos, entidades que deveriam ser protegidas pelo Governo e pelos Reguladores.
Adenda em 2020-01-03: E não tenho conhecimento de legislação sobre o direito que terão as centrais localizadas no Tua e/ou no Sabor de retirar água existente nas albufeiras respectivamente da Régua e da Valeira. É como costumam dizer alguns economistas a "tragédia dos comuns": quem pode retirar a água da albufeira da central da Régua? A central da Régua para a turbinar ou a central do Tua para bombar? O mesmo se passa na Valeira <> Sabor. Esta situação não se verifica no Douro Internacional em que a bombagem se faz com água na albufeira de Aldea d'Ávila e na albufeira de Saucelle, os espanhóis não bombam água das nossas albufeiras.
Em tempos comprámos na Finlândia umas flores estilizadas, de madeira com formas geométricas pintadas, e uma jarra de vidro de cor amarela e com uma forma irregular, lembrando a jarra (ou vaso) Savoy desenhada por Alvar Aalto e por sua mulher Aino Marsio que mostro aqui ao lado.
A dita jarra amarela com as flores de madeira estão sobre uma cómoda ao pé duma janela e em dia de muito vento a cortina esvoaçou até essa jarra e arrastou-a para o chão de madeira onde ela se partiu numa meia-dúzia de bocados.
Julgo que a jarra não foi cara mas não tendo informação sobre onde encontrar uma idêntica ou semelhante decidi-me a colar a jarra de vidro. Porém, as fracturas iam ficar muito visíveis pelo que pensei que colando um papel dourado enrugado como se usa nas decorações de Natal talvez ficasse melhor.
Passo a mostrar o resultado final, primeiro só a jarra
e depois já com as flores de madeira pintadas, a imagem da direita com um pouco de luz artificial para diminuir as sombras do lado esquerdo da imagem
Agora fui ao google e usando a imagem da jarra reparada encontrei estas jarras finlandesas artesanais feitas na firma Muurla.
Possivelmente será possível comprar online mas por enquanto tenho o problema resolvido.
Entretanto falaram-me numa técnica japonesa de reparação de cerâmica em que se valorizavam as linhas de fractura usando uma cola dourada, por vezes mesmo com pó de ouro, uma vez que não era possível esconder completamente as fracturas da peça.
Recentemente vi na net, não me consigo lembrar onde, uma referência a esta técnica que se chama Kintsugi que tem naturalmente uma entrada na Wikipédia.
Não sei se a minha técnica de reparar a jarra se poderá considerar uma variante da Kintsugi mas pelo menos tem afinidades.
Houve quem gostasse tanto do aspecto de peças tratadas com kintsugi que até partiu cerâmica para a poder decorar posteriormente. Isso já me parece exagerado. Este filminho mostra a técnica.
Em Lisboa choveu bastante durante alguns dias, o que devolveu aos prados dos Olivais a sua cor verde. Depois vieram os raios de sol e talvez por isso apareceram logo nos prados umas florinhas amarelas. No dia 22/Dezembro deste ano tirei esta foto
Com temperaturas acima de 10º, o que acaba por ser frequente em Dezembro em Lisboa nos dias com sol, lembro-me sempre da cara de espanto dum belga quando tivemos uma reunião em Lisboa há uns anos no princípio de Dezembro a perguntar-me: há agora algum fenómeno excepcional ou o tempo aqui em Dezembro é mesmo assim?
Comemorando os 500 anos da viagem de circum-navegação o jornal Expresso distribuiu nas últimas semanas uma série de 5 livrinhos
em que os 3 primeiros são uma reedição da obra de Stefan Zweig “Fernão de Magalhães. O homem e sua acção (Biografia)” publicada em 1938 e traduzida em muitas línguas e os 2 últimos são intitulados “Fernão de Magalhães – A Viagem por Gonçalo Cadilhe”.
Li com interesse os 5 livros, a parte do Stefan Zweig não é uma obra de historiador mas relata de forma muito interessante quer as primeiras viagens de Fernão de Magalhães ainda ao serviço de D.Manuel, rei de Portugal, quer as vicissitudes sofridas durante a primeira viagem de circum-navegação da Terra, já ao serviço de Carlos V, rei de Espanha.
Presumo que o Stefan Zweig foi no geral fiel aos conhecimentos históricos de 1938 sobre os eventos da biografia e em situações onde existiam mais do que uma versão do que se terá passado terá escolhido a que gostou mais ou que se integrava melhor na obra biográfica.
Stefan Zweig destaca bem o desconforto da armada de 5 navios de Espanha ser comandada por um português, numa altura em que existia tanta competição entre navegadores dos 2 países.
Magalhães estava convicto que o estuário do rio da Prata, onde se situam agora as cidades de Buenos Aires e de Montevideu, seria a passagem do oceano Atlântico para o Pacífico e ao constatar não existir aí uma passagem foi forçado a fazer verificações morosas da costa da Argentina vendo-se obrigado a passar o Inverno austral na baía de S.Julião (49º19’Sul, 67º44’ Oeste), 350 km a Norte da entrada do Estreito de Magalhães e 1800 km a Sul da foz do Rio da Prata. Para dar uma ideia, na Europa nesta latitude está o Canal da Mancha, comparando Puerto San Julián e Dover, constata-se que o inverno é mais frio nesta zona da Argentina.
Foi onde ocorreu um motim em que os amotinados mataram um elemento da tripulação. Fernão de Magalhães condenou o assassino à morte abandonando ainda dois outros membros da expedição, na costa desértica e inabitada dessa parte da Argentina, de quem não houve mais notícia.
Quando finalmente descobriram a passagem entre os dois oceanos, que tem cerca de 500 km de extensão, o navio San Antonio regressou a Espanha abandonando a expedição após motim em que o comandante do navio Álvaro Mesquita foi preso pela tripulação tendo o navio sido capitaneado por Jerónimo Guerra e pilotado por Estêvão Gomes na viagem de regresso a Espanha. Este piloto manifestara, em reunião convocada por Fernão de Magalhães, a opinião que dado o cansaço e poucos mantimentos disponíveis nos navios seria mais prudente regressar a Espanha e no ano seguinte fazer outra expedição, iniciando a travessia do Pacífico em boas condições.
Fiquei com curiosidade de saber como teria o rei de Espanha avaliado esta iniciativa desertora de Estêvão Gomes (Estéban Gomez). Li as versões da Wikipédia sobre este piloto em português, espanhol e inglês.
Quando o navio San Antonio chegou a Sevilha em Maio/1521 Estêvão Gomes foi imediatamente preso mas quando em Setembro/1522 chegou o único navio sobrevivente da expedição, comandado por Sebastián del Cano, face às descrições do que se tinha passado, foi libertado. Posteriormente convenceu o imperador Carlos V a financiar uma expedição em 1524 para fazer um levantamento da costa da América do Norte e procurar outra eventual passagem para o oceano Pacífico.
Boas Festas e Feliz Ano Novo de 2020, desta vez com uma Natividade pintada por Sandro Botticelli entre 1482 e 1485, portanto há mais de 500 anos, um intervalo de tempo que na minha juventude me parecia infinito e agora apenas muito grande
Cheguei à imagem googlando (botticelli nativity), está no museu "Isabella Stewart Gardner" em Boston onde tem uma pequena nota sobre a obra. Gostei de ver um pai mais activo no tratamento do menino Jesus, nas representações clássicas tocar o menino parece um exclusivo da Virgem Maria.
A qualidade das reproduções varia imenso na net, as imagens da fundação Getty são das melhores disponíveis e fui lá buscar este detalhe do mesmo quadro, apenas com o S.José e a Virgem Maria
Comecei por publicar um post por cada livro da série sobre o Gandi referida a seguir. Neste quinto post optei por repetir os 4 anteriores seguido de breves notas referentes ao livro 5 e ao que se passou após a independência.
Mohandas Karamchand Gandhi (1869-1948) foi um indiano notável que deu uma contribuição importante para a autodeterminação da parte indiana do império britânico
Em Janeiro de 2019 o jornal Expresso editou em 5 pequenos volumes uma autobiografia de Gandi intitulada “A minha vida e as minhas experiências com a verdade”. A obra foi escrita por Gandi na língua guzerate enquanto estava na prisão na Índia, nos anos de 1927 a 1929, portanto com quase 60 anos, cobrindo a sua vida desde a infância até 1921. A obra foi publicada em textos semanais em guzerate e posteriormente também em inglês em jornais indianos.
A figura de Gandi goza da minha simpatia, ainda mais depois de ver a personagem interpretada por Ben Kingsley no premiado filme “Gandhi” de Richard Attenborough estreado no ano de 1982 e que revejo às vezes no DVD.
Gostei de ler o conjunto dos 5 volumes mas, dada a existência de descrições organizadas da obra, limitar-me-ei a comentar alguns assuntos avulsos ou alguns pormenores que me chamaram mais a atenção.
Parte I (Livro 1)
1.1) Não comer carne
Em tempos, ao falar com um colega indiano sobre o tabu de não comer carne de vaca ele explicou-me que, face às condições climáticas da Índia e à sua densidade populacional, as vacas (e os bois) eram um capital muito importante para a agricultura, quer para lavrar os campos, quer como fonte de produtos lácteos ou ainda para fornecer excrementos a usar como adubo ou como combustível. Provavelmente, dizia esse meu colega, o conselho para conservar as vacas evoluiu para uma proibição de matar e mais tarde para um tabu religioso.
Agora googlei (importance of cow taboo in indian agriculture) e apareceu-me logo este artigo da biblioteca da Universidade de Gotemburgo na Suécia “India’s sacred cow”, de Marvin Harris de Fev/1978, com a mesma tese.
Há bastante tempo que se fala do maior consumo de energia associado ao consumo de carne de uma maneira geral e da carne de vaca em especial. Ultimamente a carne dita vermelha tem sido objecto de avisos para suprimir ou no mínimo moderar o seu consumo, por razões de saúde.
Já tenho referido a minha simpatia por um consumo muito moderado de carne mas tenho achado pouco prático uma supressão completa. O consumo de carne é comum entre os animais carnívoros e omnívoros e provavelmente o nosso organismo estará adaptado ao seu consumo.
Reconheço que provavelmente reconsideraria estes meus hábitos se tivesse que matar eu próprio o animal mas essa necessidade ainda não se colocou.
Resumindo, o consumo de carne é para mim uma questão de saúde, de sustentabilidade do planeta, de economia e de existência de pessoas disponíveis para matar animais ou, num futuro próximo, de carne feita em laboratório, sem recurso a animais vivos.
Achei assim curioso que o Gandi, quando foi para Inglaterra, tenha jurado à mãe que nunca se alimentaria com carne. Mas, pensando bem, tratando-se de uma interdição religiosa, acaba por ser natural esse tipo de juramentos.
Para ilustrar algumas formas mais modernas de preparar o Cozido à Portuguesa deixo aqui esta imagem que me dizem ter sido do restaurante Tavares Rico que já mostrara aqui.
Ainda tem carne mas já muito menos do que era costume
1.2) Usos e costumes sociais
Além dos problemas relacionados com a sua alimentação vegetariana, completamente atípica na Inglaterra dos anos 90 do século XIX e mesmo sabendo que o conhecimento de outras culturas distantes está hoje muito mais acessível à população em geral, não deixei de me admirar com o grau de ignorância do jovem Gandi sobre os usos e costumes quer da vida a bordo quer da vida quotidiana na Inglaterra.
Uma parte engraçada que conta no livro foi ter desembarcado em Inglaterra vestido com um fato de flanela branca no início do Outono (o barco saíra de Bombaim em 4/Setembro), sendo a única pessoa de Londres vestindo um fato branco nesse dia, todos os outros estando com fatos escuros, situação que Gandi recorda no livro, como lhe tendo causado grande desconforto. Faço a conjectura que o facto de os ingleses na Índia terem maior tendência para usarem cores claras terá levado o Gandi a pensar que as cores claras seriam mais apropriadas para usar em Inglaterra, se bem que durante a viagem no barco tenha vestido um fato escuro.
Se calhar foi também este trauma que o levou a vestir traje indiano de camponês quando passadas várias décadas revisitou Londres para então negociar transição da Índia para a independência.
Os códigos de vestir continuam presentes nos tempos que correm, continuando a depender do espaço e do tempo. Por exemplo os jeans, que anteriormente eram explicitamnete proibidos em muitos estabelecimentos de ensino há algumas décadas, são agora não só tolerados como mesmo “obrigatórios” se bem que “de facto” e não “de jure”. Jovens têm-me dito que quem apareça com calças de flanela será objecto de observações que o levarão a prescindir de aparecer em público com esse tipo de roupa.
Pode ser que este post acabe por ser o único sobre o livro do Gandi, escrever sobre uma figura tão notável acaba por ser uma tarefa delicada.
Parte II (Livro 2)
2.1) Início de actividade como advogado na Índia e migração para a África do Sul
Fui surpreendido com a falta de enquadramento de um advogado recém-licenciado na longínqua Inglaterra quando iniciava a sua carreira na Índia nos finais do século XIX. Depois dum bloqueamento da primeira vez que defendeu uma causa em tribunal, Gandi devolveu os honorários que cobrara e passou a questão a outro colega advogado, passando a escrever pareceres e memorandos, evitando assim a pressão da sala do tribunal.
Dificuldades que teve posteriormente no relacionamento com funcionários da administração britânica na Índia levaram-no a emigrar para a África do Sul, para dar apoio a uma firma indiana que lá operava.
Aí descreve a discriminação de que, passado algum tempo, foi alvo num combóio quando portador de um bilhete de 1ª classe o revisor lhe exigiu que fosse para 3ª classe, dada a sua condição de “não branco”, seguido de expulsão violenta do combóio, dada a sua recusa em mudar como retratado no filme “Gandhi” de Richard Attenborough.
2.2) Religiões
Boa parte deste segundo livro aborda o contacto com cristãos e suas tentativas de o converter.
Alguns cristãos com quem contactou faziam uma interpretação abusiva da redenção dos pecados, desde que se fosse cristão podia-se pecar à vontade de consciência tranquila pois Jesus Cristo viera à terra para com a sua morte redimir todos os pecados dos fiéis. Era assim uma religião melhor que muitas outras que exigiam um esforço de praticar o bem e evitar o mal. Segundo a doutrina cristã dominante os pecados dos cristãos são perdoados face a um arrependimento e ao propósito firme de não os repetir. E na Bíblia existem referências a um Juízo Final donde se deduz que a redenção dos pecados não tem esse aspecto automático referido por esses cristãos pouco informados.
Neste período teve oportunidade de ler textos sagrados do Hinduísmo, do Islão, do Budismo, do Cristianismo e doutras religiões, bem como introdução e comentários aos mesmos. Parece natural que os pais eduquem os filhos na religião em que acreditam e na Europa durante séculos o Cristianismo era a única religião “disponível” se bem que com heresias ocasionais e com as cisões dos séculos XI e XVI conforme gráfico que apresentei aqui.
Nascer na Índia trazia uma experiência diferente da Europa pois as pessoas não precisavam de viajar para terras distantes para entrar em contacto com crenças religiosas radicalmente diferentes das existentes na sua família. Na minha primeira viagem à Índia fizeram-me pela primeira vez a pergunta sobre qual era a minha religião. Em Portugal partia-se do princípio que seria católico mais ou menos praticante. Com a globalização e a facilidade actual dos fluxos de informação a norma global passou a ser mais parecida com a situação indiana.
2.3) Início de actividade política na África do Sul
Foi através de reuniões de pequenas assembleias de cidadãos indianos cuja dimensão foi aumentando sucessivamente que o Gandi se foi treinando a falar em público a audiências cada vez maiores, constituindo a associação política “Congresso Indiano de Natal” que lutou pelos direitos dos indianos nessa parte de África.
Refere a necessidade de recolher fundos para a actividade política, a boa prática de não contrair dívidas para essa actividade nem de acumular dinheiro por gastar, mantendo portanto um equilíbrio permanente entre receitas e despesas.
Passei por acaso por um artigo sobre o véu islâmico e lembrei-me dum incidente do Gandi no exercício de advocacia na África do Sul em que lhe exigiram que não usasse na sala do tribunal o seu turbante.
Ao fim de 3 anos, em1896 (com 27 anos), o Gandi viajou até à Índia onde fez alguns discursos e de onde regressou à África do Sul com a mulher, dois filhos e o filho único da irmã viúva.
Parte III (Livro 3)
3.1) Financiamento das fundações
Gandi era bastante radical neste tema como se vê nesta citação:
«...Alguns dos assim chamados grupos religiosos deixaram de prestar quaisquer contas. Os seus administradores transformaram-se em proprietários e já não são responsáveis perante ninguém. Não tenho a menor dúvida de que o ideal é que tais instituições vivam, como a natureza, do dia a dia. A organização que não conseguir apoio da comunidade não tem direito a existir como tal. As doações que uma organização assim recebe anualmente são o termómetro da sua popularidade e da honestidade da sua administração e acho que todas elas devem passar por este teste.»
Embora considerasse que existiam entidades que pela sua própria natureza não podiam ser geridas sem instalações permanentes, considerava que mesmo para essas as despesas correntes deveriam ser cobertas por doações anuais.
3.2) Educação dos filhos
Gandi apercebeu-se que as instituições educativas inglesas eram um dos pilares do império britânico pelo que chegou a aconselhar os jovens indianos a abandonar esses estudos: “em 1920 convocou jovens a sair das das cidadelas da escravidão – as suas escolas e faculdades. Disse-lhes que era muito melhor permanecer sem instrução e quebrar pedras, em nome da liberdade, do que receber educação superior atados aos grilhões da escravidão”.
Porém, foi incapaz de simultaneamente fornecer alternativas quer através de novas instituições educativas quer através de formação dentro da própria família, para a qual dispunha de tempo insuficiente para essa tarefa, dadas as suas actividades em prol das comunidades indianas.
Este foi um ponto de discórdia com os filhos que se consideraram prejudicados pela falta de instrução escolar.
3.3) Castidade
Os seres humanos são sujeitos a atracções fortes para garantir a sua sobrevivência e a sobrevivência da espécie. Essas atracções são muitas vezes premiadas por sensações muito agradáveis como por exemplo na alimentação ou no sexo, podendo transformar-se em obsessões. As sociedades tentam evitar essas obsessões através de regras morais a que corresponde a virtude da temperança ou de interdições eventualmente religiosas.
Gandi, depois de ter gerado alguns filhos convenceu-se que as relações sexuais deviam ter a procriação como única finalidade, considerando que fazer um voto de castidade o ajudaria a uma abstinência total, um conceito que designa por Brahmacharya.
Às “tentações da carne” na cultura cristã corresponde a “tentação da ascese”, fazendo o controlo através da supressão do impulso. A supressão absoluta da pulsão para comer não é aplicável de forma permanente pelo que os jejuns, se bem que existam, não podem ser para sempre pois sem limite de tempo são incompatíveis com a vida. Já em relação à pulsão sexual, a sua supressão total tem sido adoptada na vida monástica de várias religiões. Poderá ser benéfica para casos específicos, seria certamente nociva se imposta à maioria da população.
3.4) A vida de um carneiro
Durante estadia em casa de Gokhale, um seu mentor, Gandi visitou um templo da deusa Kali onde estavam a sacrificar muitos carneiros. Não aprovo o sacrifício de animais a divindades se bem que presuma que seja uma forma de fornecer proteínas a alguns grupos sociais.
Fiquei contudo chocado com a frase de Gandi “Para mim a vida de um cordeiro não é menos preciosa do que a de um homem”. Compreendo que uma pessoa adira ao vegetarianismo se bem que na natureza existam animais carnívoros. Comer carne é portanto uma actividade natural, o mesmo se podendo dizer de ter uma dieta exclusivamente vegetariana dado que existem espécies herbívoras, que se abstêm de comer carne. Mas é para mim incompreensivel não se sentir maior afinidade com um seu semelhante do que com outra espécie animal.
3.5) Darbar
Na Índia ocorriam reuniões dos governantes com os seus súbditos chamadas “Darbar” ou “Durbar” em inglês, eram formas periódicas de prestar vassalagem. Naturalmente durante o domínio britânico os governantes ingleses organizavam durbars para os quais convocavam os marajás na condição de vassalos.
Escreve o Gandi neste livro que os marajás eram nessas ocasiões forçados a usar sedas e jóias como se fossem mulheres, tratando-se de uma forma de humilhação imposta pelos ingleses.
Por curiosidade googlei Durbar e fui dar a este artigo do jornal Economic Times com estas fotos tiradas de um Durbar realizado em Delhi na semana passada, portanto em Nov/2019.
Constato que a palavra Durbar, como tantas outras, tem mudado de significado e será agora usada para reuniões sociais apresentando novas propostas de indumentárias.
Gostei muito destes vestidos embora não aprecie as jóias penduradas no nariz desta mulher
e constatei que afinal o uso de sedas e de jóias pelos homens nestas reuniões sociais
talvez faça parte da cultura indiana não sendo uma imposição do colonizador britânico.
Parte IV (Livro 4)
4.1) Discordância crescente
À medida que escrevo sobre esta autobiografia do Gandi vou notando um aumento do número de temas em que tenho uma discordância forte em relação a muitas das opiniões do Gandi.
Dada a minha formação de engenheiro e nulo activismo político, tirando a manifestação de uma ou outra opinião sobre a governação aos amigos e em poucos posts deste blogue, embora reconheça o papel muito importante do Gandi na recuperação que a Índia fez da sua soberania, tenho alguma dificuldade em entender uma eventual relação necessária entre o seu trajecto político e as suas opiniões “pré-iluministas”.
O livro refere que Gandi foi contactado, ainda na África do Sul, por membros da Sociedade Teosófica (Teosofia seria Sabedoria Divina, assim como Filosofia é “Amor pela” Sabedoria) e quando se apercebeu que esperavam dele contribuições para essa sociedade ter uma melhor compreensão da religião hinduísta acabou por ter um estímulo para ler melhor os clássicos indianos, designadamente o Bhagavad-Gita que referi aqui.
Achei estranha a referência de Gandi à memorização que fez de trechos do Bhagavad-Gita, parece-me semelhante a decorar o Corão, na religião cristã a memorização limita-se a meia-dúzia de orações, mesmo durante a celebração da missa o padre tem um livro a servir de ponto para dizer as palavras correctas sem ter que recorrer à memória.
Na liturgia actual, os serviços de notícias da TV, os apresentadores são ajudados por um teleponto para não se enganarem a comunicar as notícias do dia.
Bem sei que quando foi inventada a escrita os contadores de histórias, que tinham anteriormente de as decorar, lamentaram a descoberta desta nova tecnologia, não era a mesma coisa saber uma história de cor ou limitar-se a ler um livro e estes hábitos perduram por séculos, dizem-me que no Irão ainda existem contadores de histórias (https://www.utne.com/arts/irans-streetwise-storytellers-naghals ), que actuam na rua para quem quer ouvir.
Dando o benefício da dúvida, talvez seja um treino na arte da retórica pois tenho lido que o Bhagavad-Gita tem muitos bons exemplos de troca de argumentos.
Na referência à Teosofia na Wikipédia vi o nome de Annie Besant e googlei (annie besant indiana jones) pois julgo ter ouvido falar da Teosofia pela primeira vez na série da TV “Indiana Jones – Crónicas da Juventude) onde o jovem Indiana Jones visitava gente no princípio do século XX, gente essa que ficaria depois muito célebre.
Fui dar ao episódio “The Young Indiana Jones Chronicles - Journey of Radiance” de 1hora e 35 minutos disponível no Youtube e que deixo aqui
4.3) Leite e Caldo de carne
Existem plantas venenosas em que a ingestão de uma pequena quantidade pode causar grande mal-estar ou mesmo a morte. Distinguir as comestíveis das venenosas foi uma tarefa difícil e arriscada, ainda hoje ocorrem desastres quando se confundem cogumelos selvagens, foi uma das áreas de conhecimento em que foi mais útil a transmissão de informação entre os seres humanos.
Não conheço nenhuma proibição de indole religiosa em relação à ingestão de qualquer planta específica (os jejuns são indiscriminados) mas existem proibições de porco para muçulmanos e judeus, abstenção de sangue e produtos derivados para muçulmanos (através das técnicas prescritas para matar os animais) e de vaca para os hindus.
As proibições dos muçulmanos parecem sensatas para a região e época em que foram estabelecidas.
Também existiam razões para a proibição hindu do consumo de carne de vaca, uma delas era que as vacas podiam fornecer leite para consumo humano. Ora o Gandi, ao tomar conhecimento do tratamento que davam às vacas leiteiras achou por bem prescindir do leite da vaca e fez um voto de abstinência de leite de vaca e de ovelha. Entretanto adoeceu (o que é frequente na autobiografia) e embora lhe tenham lido textos sagrados que diziam que em caso de doença grave se devia abrir uma excepção à renúncia de leite, ele só muito tarde condescendeu em beber leite de cabra, que não estava no voto embora o Gandi considerasse que o estava a quebrar.
Doutra vez em que a mulher foi sujeita a uma operação e o médico considerou essencial para a recuperação a ingestão de caldo de carne o Gandi, ouvida a mulher, optou por levá-la para casa pois o médico recusou-se a tê-la no hospital sem a possibilidade de lhe dar caldo de carne. O único ponto positivo neste comportamento que me parece infantil é que faziam os testes neles próprios relatando os resultados a outras pessoas.
Mas tudo isto me parece muito disparatado. Descobrir uma alimentação saudável e descobrir quais os tratamentos mais eficazes para evitar e combater as doenças requer a cooperação de multidões de pessoas que dedicam toda a sua vida a estudar, aplicar e testar de forma sistemática uma multiplicidade de informações e de processos. E mesmo assim, dada a complexidade dos problemas, muitos dos comportamentos e processos que pareceram promissores vêm a revelar-se menos bons passados uns anos e vice-versa. Tentar descobrir processos que se possam aplicar à generalidade da população a partir de esperiências feitas no próprio corpo parece-me praticamente inútil.
E envolver a religião nestes assuntos parece-me contraproducente. Nutrição e Medicina devem ser deixados ao método científico de elaboração de hipóteses e teorias e sua verificação com possibilidade de as rever sempre que surjam factos novos que as infirmem.
4.4) Binóculo ao mar
Existe ainda a descrição de uma discussão tão continuada sobre a necessidade de levar uma vida simples que o Gandi acabou por convencer numa viagem de barco um dono de um binóculo a atirá-lo literalmente pela borda fora para não ter de o ouvir mais. Um binóculo poderá ser inútil para alguns donos, eu próprio tenho um que tem tido pouco uso, mas parece-me profundamente errado deitar fora um instrumento precioso e potencialmente muito útil. Será porque os camponeses indianos não precisam de binóculos e portanto não é razoável ou justo ter um binóculo? Parece uma rejeição de tudo o que vem do mundo industrializado o que é também completamente errado.
Até o Tintin foi uma vez salvo por causa duns binóculos!
Parte V (Livro 5)
5.1) Finalmente na Índia
Constato agora quando reabro este livro 5 que não escrevi notas numa das primeiras páginas como faço habitualmente. Presumo que a explicação será do filme Gandhi de Richard Attenborough mostrar com mais pormenor a actividade do Gandi na Índia, onde regressou vindo da África do Sul em 1915, com 45 anos, e onde se identificou com os mais pobres dos pobres e resistiu à opressão imperial britânica com métodos não violentos.
Para se livrar do jugo do colonizador rejeitou quase a totalidade dos elementos culturais que tinham chegado à Índia através da influência estrangeira cos colonizadores levando o pensamento técnico-científico a níveis pré-iluministas e queimando bens materiais, como por exemplo roupas, por terem sido manufacturadas na Grã-Bretanha. Considero esta radicalidade compreensível mas desnecessária.
O Gandi achou que a sua vida a partir de 1921 passou a ser tão pública e tão fortemente interligada com tantas outras pessoas que não faria sentido revelar algo que já era tão público e apenas sobre ele pois era impossível destrinçar a contribuição dada individualmente por cada membro do Congresso que trabalhou com ele.
5.2) Conhecimentos já falecidos
Tendo o Gandi escrito esta autobiografia entre 58 e 60 anos de idade impressionou-me o número de pessoas que conheceu e que já tinham morrido. Claro que os políticos interagem com um número muito maior de pessoas do que a média da população pelo que é de esperar que tenham mais pessoas conhecidas que já faleceram.
Notar porém que em muitos casos a esperança média de vida à nascença é muito baixa por causa da elevada mortalidade infantil mas para países em que morrem muitas crianças a esperança de anos de vida restante aumenta na passagem da adolescência para a idade adulta. Como os políticos com quem o Gandi interagiu foram conhecidos quando já eram adultos talvez não fosse de esperar que tantos já tivessem falecido.
5.3) Resultados de longo prazo
Depois da independência e com a instituição de um regime democrático acabaran as fomes letais que ocorriam de vez em quando no tempo do império mas permaneceu a subnutrição.
A intocabilidade foi suprimida de jure mas não acabou de facto, os direitos das mulheres têm melhorado lentamente mas permanece um déficit anómalo de jovens do sexo feminino, indiciando abortos selectivos e mesmo infanticídios favorecendo predominância de rapazes..
Observei progressos notáveis nas viagens à Índia que fiz entre 1990 e 2012, no entanto a desigualdade na Índia tem aumentado mais do que noutrras zonas do globo, conforme se constata neste gráfico publicado publicado no le Figaro:
Depois das suas riquezas serem drenadas para fora da Índia pelo sistema capitalista parece compreensível a aproximação a Moscovo, se bem que não alinhada, pouco depois de ganhar a independência. O colapso do sistema soviético levou a uma abertura maior aos mercados o que, conjugado com a permanência da cultura de castas, colocou a Índia no topo da desigualdade nesta comparação com outras grandes áreas económicas.
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O jogo foi inventado pelo matemático dinamarquês Piet Hein, que o introduziu em 1942 no Instituto Niels Bohr. Foi independentemente re-inventado em 1947 pelo matemático John Nash na Universidade de Princeton.
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A configuração mais frequente é com 11x11 casas, quem joga primeiro tem vantagem que se desvanece com o aumento do número de casas. O jogo tem uma característica interessante de não admitir empates o que torna equivalente a melhor defesa ao melhor ataque. Portanto, não é preciso um "killer instinct" pois quem se contenta em se defender dos ataques do adversário está a construir uma linha que sendo a melhor barreira ao avanço do outro é ao mesmo tempo a melhor linha de ataque.
Mandei fazer há muitos anos um tabuleiro de madeira com furos, à semelhança da versão dinamarquesa, mas nesse tempo não existia Excel e existiam marceneiros a custos razoáveis. Pensando dar uma vantagem mais pequena a quem inicia o jogo, na altura encomendei o tabuleiro com 13x13 casas em vez das 11x11 mais comuns, conforme se constata na foto respectiva:
Depois de imprimir o ficheiro .pdf numa folha A3 de gramagem um pouco maior do que a do papel de fotocópia numa loja do meu bairro (Loja de Fotografias, Rua Cidade Bolama, Nº 14-C 1800-079 Lisboa) comprei uma moldura de 30x40cm no AKI onde comprei também 70 porcas com furo de 8mm e largura exterior de 13mm. Precisei de cortar duas pequenas tiras de papel nos lados do papel A3 para caber na moldura. Depois derreti cera para dentro dos furos roscados de 35 das porcas para se distinguirem em dois conjuntos e fiquei a pensar que teria sido funcionalmente equivalente e provavelmente mais fácil encher os furos com plasticina em vez de cera.. Finalmente comprei no Tiger duas caixinhas de plástico com um conteúdo para aqui irrelevante.
Seguidamente coloquei o tabuleiro com um conjunto inicial de peças a fingir um jogo numa fase inicial e fotografei:
À medida que escrevo sobre esta autobiografia do Gandi vou notando um aumento do número de temas em que tenho uma discordância forte em relação a muitas das opiniões do Gandi.
Dada a minha formação de engenheiro e nulo activismo político, tirando a manifestação de uma ou outra opinião sobre a governação aos amigos e em poucos posts deste blogue, embora reconheça o papel muito importante do Gandi na recuperação que a Índia fez da sua soberania, tenho alguma dificuldade em entender uma eventual relação necessária entre o seu trajecto político e as suas opiniões “pré-iluministas”.
O livro refere que Gandi foi contactado, ainda na África do Sul, por membros da Sociedade Teosófica (Teosofia seria Sabedoria Divina, assim como Filosofia é “Amor pela” Sabedoria) e quando se apercebeu que esperavam dele contribuições para essa sociedade ter uma melhor compreensão da religião hinduísta acabou por ter um estímulo para ler melhor os clássicos indianos, designadamente o Bhagavad-Gita que referi aqui.
Achei estranha a referência de Gandi à memorização que fez de trechos do Bhagavad-Gita, parece-me semelhante a decorar o Corão, na religião cristã a memorização limita-se a meia-dúzia de orações, mesmo durante a celebração da missa o padre tem um livro a servir de ponto para dizer as palavras correctas sem ter que recorrer à memória.
Na liturgia actual, os serviços de notícias da TV, os apresentadores são ajudados por um teleponto para não se enganarem a comunicar as notícias do dia.
Bem sei que quando foi inventada a escrita os contadores de histórias, que tinham anteriormente de as decorar, lamentaram a descoberta desta nova tecnologia, não era a mesma coisa saber uma história de cor ou limitar-se a ler um livro e estes hábitos perduram por séculos, dizem-me que no Irão ainda existem contadores de histórias (https://www.utne.com/arts/irans-streetwise-storytellers-naghals ), que actuam na rua para quem quer ouvir.
Dando o benefício da dúvida, talvez seja um treino na arte da retórica pois tenho lido que o Bhagavad-Gita tem muitos bons exemplos de troca de argumentos.
Na referência à Teosofia na Wikipédia vi o nome de Annie Besant e googlei (annie besant indiana jones) pois julgo ter ouvido falar da Teosofia pela primeira vez na série da TV “Indiana Jones – Crónicas da Juventude) onde o jovem Indiana Jones visitava gente no princípio do século XX, gente essa que ficaria depois muito célebre.
Fui dar ao episódio “The Young Indiana Jones Chronicles - Journey of Radiance” de 1hora e 35 minutos disponível no Youtube e que deixo aqui
4.3) Leite e Caldo de carne
Existem plantas venenosas em que a ingestão de uma pequena quantidade pode causar grande mal-estar ou mesmo a morte. Distinguir as comestíveis das venenosas foi uma tarefa difícil e arriscada, ainda hoje ocorrem desastres quando se confundem cogumelos selvagens, foi uma das áreas de conhecimento em que foi mais útil a transmissão de informação entre os seres humanos.
Não conheço nenhuma proibição de indole religiosa em relação à ingestão de qualquer planta específica (os jejuns são indiscriminados) mas existem proibições de porco para muçulmanos e judeus, abstenção de sangue e produtos derivados para muçulmanos (através das técnicas prescritas para matar os animais) e de vaca para os hindus.
As proibições dos muçulmanos parecem sensatas para a região e época em que foram estabelecidas.
Também existiam razões para a proibição hindu do consumo de carne de vaca, uma delas era que as vacas podiam fornecer leite para consumo humano. Ora o Gandi, ao tomar conhecimento do tratamento que davam às vacas leiteiras achou por bem prescindir do leite da vaca e fez um voto de abstinência de leite de vaca e de ovelha. Entretanto adoeceu (o que é frequente na autobiografia) e embora lhe tenham lido textos sagrados que diziam que em caso de doença grave se devia abrir uma excepção à renúncia de leite, ele só muito tarde condescendeu em beber leite de cabra, que não estava no voto embora o Gandi considerasse que o estava a quebrar.
Doutra vez em que a mulher foi sujeita a uma operação e o médico considerou essencial para a recuperação a ingestão de caldo de carne o Gandi, ouvida a mulher, optou por levá-la para casa pois o médico recusou-se a tê-la no hospital sem a possibilidade de lhe dar caldo de carne. O único ponto positivo neste comportamento que me parece infantil é que faziam os testes neles próprios relatando os resultados a outras pessoas.
Mas tudo isto me parece muito disparatado. Descobrir uma alimentação saudável e descobrir quais os tratamentos mais eficazes para evitar e combater as doenças requer a cooperação de multidões de pessoas que dedicam toda a sua vida a estudar, aplicar e testar de forma sistemática uma multiplicidade de informações e de processos. E mesmo assim, dada a complexidade dos problemas, muitos dos comportamentos e processos que pareceram promissores vêm a revelar-se menos bons passados uns anos e vice-versa. Tentar descobrir processos que se possam aplicar à generalidade da população a partir de esperiências feitas no próprio corpo parece-me praticamente inútil.
E envolver a religião nestes assuntos parece-me contraproducente. Nutrição e Medicina devem ser deixados ao método científico de elaboração de hipóteses e teorias e sua verificação com possibilidade de as rever sempre que surjam factos novos que as infirmem.
4.4) Binóculo ao mar
Existe ainda a descrição de uma discussão tão continuada sobre a necessidade de levar uma vida simples que o Gandi acabou por convencer numa viagem de barco um dono de um binóculo a atirá-lo literalmente pela borda fora para não ter de o ouvir mais. Um binóculo poderá ser inútil para alguns donos, eu próprio tenho um que tem tido pouco uso, mas parece-me profundamente errado deitar fora um instrumento precioso e potencialmente muito útil. Será porque os camponeses indianos não precisam de binóculos e portanto não é razoável ou justo ter um binóculo? Parece uma rejeição de tudo o que vem do mundo industrializado o que é também completamente errado.
Até o Tintin foi uma vez salvo por causa duns binóculos!
"Pelo fruto se vê a árvore", diz na Bíblia, conselho adequado para os espíritos mais práticos, focados na contribuição alimentar de cada espécie vegetal. Nestes tempos, em que os citadinos encontram os seus alimentos na maior parte das vezes nas prateleiras dos supermercados, as árvores nas cidades têm um papel mais decorativo e de fixação do carbono a partir do anidrido carbónico existente na atmosfera. Nos Olivais existem muitas árvores, como os leitores deste blogue têm tido oportunidade de conhecer.
Desta vez reparei num Medronheiro, geralmente um arbusto mas que se pode desenvolver até ficar uma árvore como foi o caso deste, localizado na Quinta do Contador-Mor, encostado à grade da rua Cidade de Lobito.
mostrando a seguir uma parte da imagem anterior em que se vêem melhor os frutos, inicialmente amarelos e vermelhos quando maduros
Dizia na Wikipédia que os frutos aparecem no Outono, estação onde se situa o dia 1/Dez/2019, data em que estas imagens foram obtidas.
Dizia ainda que coexistem na mesma época os frutos e as flores que vão dar origem aos frutos do ano seguinte. Andei à procura das flores e descobri alguns conjuntos de cor branca que parecem uns recipientes com a boca para baixo
Talvez se veja um pouco melhor na ampliação da mesma foto que mostro a seguir
mas para ver bem a forma das flores pode vê-las aqui, onde tem esta imagem do David Perez:
De vez em quando leio artigos sobre os problemas com a seca e embora reconheça que existem problemas de abastecimento da água em Portugal, sinto desconforto na forma como o tema é apresentado nos jornais.
O clima de Portugal, na parte continental, apresenta grandes diferenças entre o Norte e o Sul, em que existe muito mais precipitação no Norte do que no Sul, grandes variações na precipitação entre as estações do ano, com muito pouca precipitação durante o Verão e também variações apreciáveis na quantidade de precipitação anual.
Contudo o nosso país, com a sua frente atlântica donde vêm ventos húmidos e conjuntos montanhosos com altitude adequada e frequentemente correndo paralelamente à costa, propiciam precipitações apreciáveis para os valores típicos do continente europeu.
Por exemplo a pluviosidade de Lisboa é semelhante à de Londres e à de Bruxelas, com a diferença de que enquanto nos meses de Verão quase não chove em Lisboa, nas outras duas cidades a precipitação disrtribui-se de forma mais homogénea pelos 12 meses.
Como consequência nalgumas actividades, tais como na gestão da água das albufeiras, usa-se o conceito de “Ano hidrológico” que coincide grosso modo com o ano lectivo, começando em Outubro, quando aparecem tipicamente as primeiras chuvas e terminando em Setembro, quando será espectável que os níveis das albufeiras estejam no seu valor mais baixo do ano.
É normalmente neste fim de ano hidrológico que se fala do nível baixo das albufeiras e das desgraças que nos espreitam se não vier a chuva.
Esta característica do nosso país de, à medida que se vai para o Norte, se ver um país cada vez mais verde, leva-nos a pensar que países mais para o Norte da Europa terão maiores precipitações, mesmo sabendo que a precipitação não depende geralmente da latitude.
O facto do nosso país receber mais turistas no Verão poderá também levar esses visitantes a pensar que vivemos num país cheio de sol quando a realidade é que, além de termos muito sol, temos também muita chuva.
Para ilustrar estas afirmações fui verificar o valor da precipitação por país neste sítio a que o Google me conduziu buscando (yearly precipitation by country), tendo registado os valores de alguns países em tabela que apresento no fim deste post.
Antigamente referia-se que tinha chovido num dado dia 4mm. Isto queria dizer que se tivéssemos uma superfície plana exposta à chuva e donde não saísse a água da chuva, nem por infiltração no terreno, nem por escorrência para superfícies adjacentes mais baixas nem por evaporação e não recebesse água de zonas adjacentes, a altura da água no fim do dia seria 4mm. Numa superficie com a área de 1 m2 o volume de água sobre essa área dessa superfície seria 4 litros, donde a referência actualmente mais frequente a 4 l/ m2.
A água que cai numa área de 1 km2 é 1 milhão de vezes maior do que a que cai num m2 pelo que me pareceu melhor usar o m3 como medida da água que cai em cada km2 do país em questão.
Para avaliar a situação de cada país pareceu-me razoável dividir os m3 de água pelos km2 de superfície de cada país pelo número de habitantes por km2 desse país (valor da densidade populacional obtido na Wikipédia) obtendo assim o valor anual da precipitação de água por habitante expresso em m3.
Dos países seleccionados constata-se que o valor mais elevado com 7625 m3 por habitante é o de Portugal. Claro que existem todos os factores que referi acima que condicionam o número obtido mas é neste sentido que eu costumo dizer que os portugueses não têm motivo para se queixarem da falta de água do nosso país, se ela falta é porque não está a ser bem gerida pois cai do céu com fartura.
Fui buscar à Wikipédia esta animação interessantíssima sobre a chuva nos vários meses do ano (https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/d/d6/MeanMonthlyP.gif ) onde por exemplo se vê a secura do Verão na península ibérica
O post anterior sobre dívida fez-me ir à procura de “dívida” neste blogue, tendo encontrado 11 posts com esta palavra, distribuída assim por ano: 2019-1, 2018-1, 2015-1, 2014-1, 2013-3, 2011-4.
Ao reler alguns dos posts relembrei os ataques sucessivos à Constituição da República Portuguesa pelo governo de Pedro Passos Coelho e a defesa firme e clara que o Professor Jorge Reis Novais dela fez nessa altura. Foi sempre um prazer ouvi-lo.
Ultimamente não o tenho visto na TV, provavelmente porque a Constituição não tem sido tão atacada, mas deixo aqui três pequenos filmes com alguns anos que encontrei agora no YouTube
Tomei conhecimento desta verificação da BBC sobre se a China estará a sobrecarregar a Àfrica com dívida.
Achei curiosa esta preocupação, referida por exemplo nesta frase:
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Earlier this year, ahead of a visit to Africa, the then US Secretary of State, Rex Tillerson, said China's lending policy to Africa "encouraged dependency, utilised corrupt deals and endangered its natural resources".
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pois tem sido uma constante da História, desde que se fazem empréstimos com juros, que quem tem falta de dinheiro peça emprestado a quem o tem, sendo frequente que o devedor tenha dificuldade em pagar o que deve.
Por exemplo Portugal endividiu-se excessivamente em libras esterlinas, depois em dólares americanos e ultimamente sobretudo em euros, estes últimos emprestados por bancos alemães e espanhóis para comprarmos os terrenos das nossas habitações e fazermos auto-estradas primeiro e depois para pagarmos os juros dos empréstimos anteriores e irmos amortizando a dívida.
Deve fazer parte da essência do funcionamento dos bancos emprestarem dinheiro até que o devedor fique excessivamente endividado. Nessa altura tentam executar as garantias dadas quando o empréstimo foi contraído. É uma operação com algum risco mas em que se podem ficar com as garantias do empréstimo por preços muito atractivos.
Por exemplo a Inglaterra reduziu o Egipto à condição de protectorado servindo-se das receitas do canal do Suez para se ressarcir de empréstimos que fizera ao governante local. Também ganhou direitos de exploração do petróleo do Irão na fase em que a dinastia Qajar vendia concessões de bens ou de monopólios iranianos dadas as extravagantes necessidades dos Xás.
Os Estados Unidos da América fizeram por exemplo empréstimos ruinosos para o Brasil durante a ditadura militar com a agravante de terem dado apoio ao regime ditatorial na repressão dos opositores.
Agora que na China se fabrica uma parte muito importante dos produtos consumidos em todo o mundo, a China não só tem muito capital como precisa de muitas matérias primas para produzir todos esses produtos.
É assim natural que empreste dinheiro a África, quer para investimentos que facilitem a exportação de matérias-primas de que necessita quer para investir o seu excesso de liquidez. E também sucumbirá certamente à tentação de executar algumas garantias para ser indemnizada de dívidas não pagas.
Noutro artigo da BBC o autor interroga-se se a África deve ter cuidado com os empréstimos chineses. Claro que sim mas apenas porque são os que actualmente representam o maior volume e não por serem especificamente chineses. O economista Joseph Stiglitz é referido como usando o termo “sour grapes” para classificar a crítica ocidental do trabalho da China em África. Este termo “sour grapes” deve derivar da fábula da raposa quando dizia que as uvas não prestavam pois estariam verdes como consolo de as não conseguir alcançar. Stiglitz reconhece naturalmente que a gestão da dívida exige cautela para que não se torne excessiva.
Tendo eu muito pouco interesse por futebol é difícil em Portugal não tomar conhecimento de coisas que se vão passando nesse mundo.
Achava graça ao treinador José Mourinho e, face aos grandes resultados que ele ia obtendo com as equipas que treinava, eu considerava que a sua arrogância era dificil de evitar para quem inovava tanto na sua profissão.
Agora parece que conseguiu também a humildade de quem tem sucesso, diz que analisou o que tem feito, identificou erros que cometeu e não vai repetir esses erros vai fazer erros novos!
que ela projectou quando tinha 90 anos. Nesse artigo refere-se que na estadia da Charlotte Periand no Japão tomou conhecimento do livro "The Book of Tea" publicado em 1906, escrito originalmente em inglês por Kakuzo Okakura (1862-1913), pintor, escritor e estudioso da arte japonesa, um dos principais fundadores da Escola de Artes de Tóquio de que seria professor. O livro foi escrito para dar a conhecer a cultura japonesa aos ocidentais e a sua leitura teve uma influência profunda e duradoura em Charlotte Perriand.
Fiquei curioso e descobri que existia uma edição em português: Biblioteca Editores Independentes / Cotovia, julho de 2007 ISBN: 9789727951994 96 páginas, Tradução de Fernanda Mira Barros
que comprei.
Gostei do livro que me pareceu cumprir bem o objectivo de dar a conhecer aos ocidentais alguns aspectos importantes da cultura japonesa e da sua arte.
Não resisti a transcrever uma boa parte do capítulo intitulado "A Sala-de-Chá".
Tinha tido há alguns anos experiências desanimadoras na conversão de digitalizações de textos para sequências de caracteres processáveis por programas como o "Notepad" ou o "Word", nessa altura dava tanto trabalho corrigir os erros da conversão como escrever tudo "à mão".
Na busca que fiz agora na internet descobri que no Google Drive fazem essa conversão, por exemplo de ficheiros .pdf com texto fotografado ou de ficheiros .jpg ou outros. Basta colocar o ficheiro em questão no Google Drive e abri-lo com o programa Docs, a conversão é feita sem necessitar de mais comandos como informam aqui (How to OCR Documents for Free in Google Drive) . Fiquei agradavelmente surpreendido com os melhoramentos do que se chamava "OCR- Optical Character Recognition", as digitalizações que eu fiz do livro até deixavam um pouco a desejar e contudo a conversão de 5 páginas do livro fizeram-se sem erros!
Numa folha de formato A4 com "Times New Roman 12" o texto do livro que passo a transcrever ocupa cerca de uma página e meia:
Páginas 56 a 61 do Capítulo “A Sala-de-Chá” do "Livro do Chá" « ... Que a sala do chá deva ser construída para servir algum gosto individual é uma imposição do princípio de vitalidade na arte. A arte, para ser inteiramente apreciada, tem de fazer justiça à vida contemporânea. Não se trata de devermos ignorar os requisitos da posteridade mas sim de procurarmos fruir melhor o presente. Não se trata de devermos desrespeitar as criações do passado , mas sim de tentarmos assimilá-las na nossa consciência. A escravizante conformidade com tradições e fórmulas agrilhoa a expressão da individualidade em arquitectura. Não podemos senão chorar aquelas insensatas imitações de prédios europeus que se observam no Japão moderno. Maravilhamo-nos com a razão pela qual, entre as nações ocidentais mais progressivas, a arquitectura havia de ser tão despida de originalidade, tão repleta de repetições de estilos obsoletos. Talvez atravessemos agora uma era de democratização na arte, enquanto aguardamos o surgimento de algum mestre principesco que venha estabelecer uma nova dinastia. Quem dera que amássemos mais os antigos e os copiássemos menos! Já se disse que os Gregos foram grandes por nunca se basearem na antiguidade.
O termo Domicílio do Vazio, para além de transmitir a teoria taoísta do todo-abrangente, implica a concepção de uma necessidade contínua de mudança nos motivos decorativos. A sala-de-chá está vazia em absoluto, excepto naquilo que ali pode colocar-se temporariamente para satisfazer um qualquer humor estético. Algum objecto de arte especial é trazido para a ocasião, e tudo o mais é seleccionado e arranjado para realçar a beleza do tema principal. Não podemos escutar diferentes peças musicais ao mesmo tempo, sendo uma verdadeira compreensão do belo apenas possível através da concentração nalgum motivo central. Assim verse-á que o sistema de decoração na nossa sala-de-chá se opõe àquele que prevalece no Ocidente, onde o interior de uma casa é amiúde convertido num museu. Para um japonês, acostumado à simplicidade de ornamentação e à mudança frequente de método decorativo, um interior ocidental, permanentemente preenchido com um vasto aparato de quadros, estatutária e bricabraque, dá a impressão de uma mera exibição vulgar de riquezas. Para usufruir da visão permanente, até mesmo de uma obra-prima, há que ter um forte poder de apreciação, e a capacidade de sentir a arte tem de ser realmente ilimitada naqueles que conseguem viver, dia após dia, no meio de tamanha confusão de cor e forma como a que amiúde se observa nos lares da Europa e da América.
O Domicílio do Assimétrico sugere outra fase do nosso esquema decorativo. A ausência de simetria nos objectos de arte japoneses foi frequentemente comentada pelos críticos ocidentais. Também isto resulta de um desenvolvimento, através do Zenismo, de ideais taoístas. O Confucionismo, com a sua bem enraizada ideia de dualismo, e o Budismo do Norte, com a sua veneração de uma trindade, não se opuseram de modo algum à expressão de simetria. De facto, se estudarmos os antigos bronzes da China ou as artes sacras da dinastia Tang e do período Nara, reconheceremos uma busca constante de simetria. A decoração dos nossos interiores clássicos era decididamente regular no seu arranjo. Contudo, a concepção de perfeição taoísta e zen era diferente. A natureza dinâmica desta filosofia punha maior ênfase no processo através do qual se procurava a perfeição do que na própria perfeição. A verdadeira beleza só podia ser descoberta por quem completasse mentalmente o incompleto. O vigor da vida e da arte assentava nas suas possibilidades de crescimento. Na sala-de-chá cabe à imaginação de cada convidado completar para si próprio o efeito total. Desde que o Zenismo se tornou o modo de pensar predominante, a arte do extremo Oriente fez por evitar o simétrico como expressão, não apenas de acabamento, mas também de repetição. A uniformidade do padrão foi igualmente considerada fatal para a frescura da imaginação. Assim, as paisagens, as aves e as flores tornaram-se temas favoritos de representação, mais do que a figura humana, que estava presente na pessoa do próprio observador. Já estamos demasiadas vezes em evidência e, apesar da nossa vaidade, até mesmo a auto-estima está sujeita a tornar-se monótona.
Na sala-de-chá o medo de repetição é uma presença constante. Os vários objectos para a decoração de uma sala devem ser seleccionados de modo a que não se repita nenhuma cor ou padrão. Se temos uma flor natural, uma pintura de flores é inadmissível. Se utilizamos uma chaleira redonda, o jarro de água deve ser angular. Uma chávena com um vidrado negro não deveria associar-se a uma caixa para chá de laca negra. Ao colocar uma jarra ou um recipiente para queimar incenso no Tokonoma, deverá haver cuidado para que não fique exactamente ao centro, não vá dividir o espaço em metades iguais. O pilar do Tokonoma deve ser de um tipo de madeira diferente do dos outros pilares, de modo a quebrar qualquer sugestão de monotonia na sala.
Também aqui o método japonês de decoração de interiores difere do ocidental, onde vemos objectos dispostos simetricamente em prateleiras e noutros locais. Nas casas ocidentais confrontamo-nos amiúde com o que nos parece ser uma reiteração inútil. Encontramo-la ao tentar conversar com um homem, enquanto o seu retrato de corpo inteiro nos fita por trás dele. Questionamo-nos sobre qual será verdadeiro, aquele que está no retrato ou aquele que conversa, e temos a curiosa convicção de que um deles há-de ser uma fraude. Repetidas vezes me sentei a uma mesa festiva contemplando, com um choque secreto para a minha digestão, a representação de abundância nas paredes da sala de jantar. Porquê estas vítimas da caça ou do desporto retratadas, o trinchar esmerado de peixes e frutos? Porquê a disposição de baixelas familiares, recordando-nos aqueles que jantaram e estão mortos?
A simplicidade da sala-de-chá e a sua liberdade face à vulgaridade fazem dela verdadeiramente um santuário distante dos vexames do mundo exterior. Ali, e só ali, pode alguém dedicar-se à adoracão imperturbada do belo. No século dezasseis, a sala-de-chá permitia um desejado descanso do trabalho aos guerreiros valentes e aos governantes implicados na unificação e reconstrução do Japão. No século dezassete, após o desenvolvimento do rígido formalismo da regência Tokugawa, ela oferecia a única oportunidade possível para a livre comunhão dos espíritos artísticos. Perante uma obra de arte grandiosa não havia a menor distinção entre daimyo, samurai e as gentes comuns. Hoje em dia o industrialismo torna o verdadeiro requinte cada vez mais difícil por todo o mundo. Não precisaremos nós, mais do que nunca, da sala-de-chá?
» Entretanto, além das edições disponíveis em papel, descobri uma versão completa em inglês do "Book of Tea":