Mohandas Karamchand Gandhi (1869-1948) foi um indiano notável que deu uma contribuição importante para a autodeterminação da parte indiana do império britânico
Em Janeiro de 2019 o jornal Expresso editou em 5 pequenos volumes uma autobiografia de Gandi intitulada “A minha vida e as minhas experiências com a verdade”. A obra foi escrita por Gandi na língua guzerate enquanto estava na prisão na Índia, nos anos de 1927 a 1929, portanto com quase 60 anos, cobrindo a sua vida desde a infância até 1921. A obra foi publicada em textos semanais em guzerate e posteriormente também em inglês em jornais indianos.
A Wikipédia tem uma entrada sobre o livro, como habitualmente telegráfica em português e bastante completa em inglês.
A figura de Gandi goza da minha simpatia, ainda mais depois de ver a personagem interpretada por Ben Kingsley no premiado filme “Gandhi” de Richard Attenborough estreado no ano de 1982 e que revejo às vezes no DVD.
Gostei de ler o conjunto dos 5 volumes mas, dada a existência de descrições organizadas da obra, limitar-me-ei a comentar alguns assuntos avulsos ou alguns pormenores que me chamaram mais a atenção.
Parte I (Livro 1)
1) Não comer carne
Em tempos, ao falar com um colega indiano sobre o tabu de não comer carne de vaca ele explicou-me que, face às condições climáticas da Índia e à sua densidade populacional, as vacas (e os bois) eram um capital muito importante para a agricultura, quer para lavrar os campos, quer como fonte de produtos lácteos ou ainda para fornecer excrementos a usar como adubo ou como combustível. Provavelmente, dizia esse meu colega, o conselho para conservar as vacas evoluiu para uma proibição de matar e mais tarde para um tabu religioso.
Agora googlei (importance of cow taboo in indian agriculture) e apareceu-me logo este artigo da biblioteca da Universidade de Gotemburgo na Suécia “India’s sacred cow”, de Marvin Harris de Fev/1978, com a mesma tese.
Há bastante tempo que se fala do maior consumo de energia associado ao consumo de carne de uma maneira geral e da carne de vaca em especial. Ultimamente a carne dita vermelha tem sido objecto de avisos para suprimir ou no mínimo moderar o seu consumo, por razões de saúde.
Já tenho referido a minha simpatia por um consumo muito moderado de carne mas tenho achado pouco prático uma supressão completa. O consumo de carne é comum entre os animais carnívoros e omnívoros e provavelmente o nosso organismo estará adaptado ao seu consumo.
Reconheço que provavelmente reconsideraria estes meus hábitos se tivesse que matar eu próprio o animal mas essa necessidade ainda não se colocou.
Resumindo, o consumo de carne é para mim uma questão de saúde, de sustentabilidade do planeta, de economia e de existência de pessoas disponíveis para matar animais ou, num futuro próximo, de carne feita em laboratório, sem recurso a animais vivos.
Achei assim curioso que o Gandi, quando foi para Inglaterra, tenha jurado à mãe que nunca se alimentaria com carne. Mas, pensando bem, tratando-se de uma interdição religiosa, acaba por ser natural esse tipo de juramentos.
Para ilustrar algumas formas mais modernas de preparar o Cozido à Portuguesa deixo aqui esta imagem que me dizem ter sido do restaurante Tavares Rico que já mostrara aqui.
Ainda tem carne mas já muito menos do que era costume
2) Usos e costumes sociais
Além dos problemas relacionados com a sua alimentação vegetariana, completamente atípica na Inglaterra dos anos 90 do século XIX e mesmo sabendo que o conhecimento de outras culturas distantes está hoje muito mais acessível à população em geral, não deixei de me admirar com o grau de ignorância do jovem Gandi sobre os usos e costumes quer da vida a bordo quer da vida quotidiana na Inglaterra.
Uma parte engraçada que conta no livro foi ter desembarcado em Inglaterra vestido com um fato de flanela branca no início do Outono (o barco saíra de Bombaim em 4/Setembro), sendo a única pessoa de Londres vestindo um fato branco nesse dia, todos os outros estando com fatos escuros, situação que Gandi recorda no livro, como lhe tendo causado grande desconforto. Faço a conjectura que o facto de os ingleses na Índia terem maior tendência para usarem cores claras terá levado o Gandi a pensar que as cores claras seriam mais apropriadas para usar em Inglaterra, se bem que durante a viagem no barco tenha vestido um fato escuro.
Se calhar foi também este trauma que o levou a vestir traje indiano de camponês quando passadas várias décadas revisitou Londres para então negociar transição da Índia para a independência.
Os códigos de vestir continuam presentes nos tempos que correm, continuando a depender do espaço e do tempo. Por exemplo os jeans, que anteriormente eram explicitamnete proibidos em muitos estabelecimentos de ensino há algumas décadas, são agora não só tolerados como mesmo “obrigatórios” se bem que “de facto” e não “de jure”. Jovens têm-me dito que quem apareça com calças de flanela será objecto de observações que o levarão a prescindir de aparecer em público com esse tipo de roupa.
Pode ser que este post acabe por ser o único sobre o livro do Gandi, escrever sobre uma figura tão notável acaba por ser uma tarefa delicada.
3 comentários:
Recebi este comentário por e-mail do meu colega António Blanco:
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Caro Amarante :
Embora o tema fosse a figura de Gandhi, confesso que não simpatizo com a Índia, pelo seu complexo de colonizado ante Portugal e agora com a sua pretensão de super-potência, carregada de milhões de esfomeados e de fanáticos das raças, etc.
E também não me esqueço que em 1998 rejeitou ostensivamente o convite de Portugal para participar nas comemorações da chegada de Vasco fa Gama à Índia. Em 98, já não havia nenhum Salazar em Portugal.
Enfim, complexos que continuam vivos nos seus dirigentes políticos.
Abr., AB
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Depois enviei-lhe esta resposta:
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Caro António Blanco,
Eu considero o sistema de castas uma abominação e é a principal fraqueza da sociedade indiana. O facto de se reconhecer que por nascimento alguns são superiores aos outros é meio caminho andado para aparecer uma potência exterior que seja considerada como uma super-casta.
Eu compreendo o nenhum entusiasmo dos indianos em comemorar a chegada do Vasco da Gama à Índia. Tendo sido um enorme feito, a descoberta do caminho marítimo para a Índia, a nossa política lá foi mais hostil desde o início do que por exemplo com a Tailândia, país simpático que nos ofereceu o pequeno pavilhão de Belém para comemorar os 500 anos de relações diplomáticas entre os dois países que referi aqui: https://imagenscomtexto.blogspot.com/2012/05/pavilhao-tailandes-em-belem.html
Os tempos eram outros e já passaram, nós actualmente temos boas relações com os franceses mas faria pouco sentido fazer, por exemplo uma comemoração conjunta da chegada das tropas napoleónicas a Portugal, se bem que alegadamente para nos libertarem da tirania do nosso rei e nobreza e instaurarem a Liberté, Égalité, Fraternité.
Embora com raízes desde a nossa chegada invasora, a antipatia dos indianos terá sido reforçada ou refrescada pela obstinação do Salazar em sair de Goa, Damão e Diu de forma negociada, preferindo que os nossos militares, desprovidos de meios de combate, oferecessem o supremo sacrifício a bem da Nação, enquanto ele estava no bem-bom de Lisboa a mandar bocas, fazendo lembrar os políticos e generais da 1ª Grande Guerra na Europa que sacrificaram uma geração de jovens nas trincheiras enquanto discutiam estratégias nos chateaux, nos clubs e nos equivalentes germânicos e fuzilavam os soldados que tentavam resistir a tanta iniquidade como tão bem documentado naquele filme do Stanley Kubrick, Paths of Glory (https://en.wikipedia.org/wiki/Paths_of_Glory ).
Claro que muitos habitantes do Estado da Índia gostavam dos portugueses mas não havia unanimidade nesse afecto.
Abraço
Amarante
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Tendo recebido este comentário:
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Caro Amarante :
A tua comparação parece-me forçada. Vejamos :
Quando a França de Napoleão, notável militar, mas megalómano, invadiu Portugal, com o intuito da sua destruição e consequente retalhação, em conluio com a traição espanhola, Portugal era um Reino independente, dos mais antigos da Europa.
Quando o Gama chegou à Índia, esta não existia como Estado soberano, antes era uma multidão de pequenos reinos, de chefes rivais, que se guerrravam continuamente entre si, muitos deles subjugados pelo poder muçulmano que ali dominavam o comércio das especiarias e que impuseram a muitos destes pequenos reinos indianos o Islão, tradicional inimigo comum de europeus cristãos, ali e no resto da Ásia.
Só por esta circunstância de extrema divisão e rivalidade dos indianos entre si é que os escassos ousados e engenhosos portugueses, por alianças múltiplas com chefes locais, explorando a sua rivalidade e o ódio comum ao Islão de alguns deles, lograram impor-se-lhes, vencendo-os e estabelecendo ali, em pontos bem escolhidos, pequenos enclaves de soberania portuguesa, cuja administração foi por eles aceite ou tolerada durante mais de 400 anos.
Depois da sua independência, a Índia, nova e muito diversa entidade para os portugueses, começou a sentir como uma ofensa a existência dos pequenos enclaves portugueses no seu território, exigindo a sua entrega, pura e simples, após as primeiras diligências encetadas com Salazar, que não mostrou, de facto, flexibilidade nenhuma neste campo da descolonização dos seus territórios, espalhados pelo mundo.
Depois, foi o que se sabe, a Índia, dita potência pacifista, complexada ante um inimigo minúsculo, com débil e distante logística, desencadeou a invasão de Goa, Damão e Diu contra o que estava estipulado na ONU para a resolução destes conflitos.
Quase ao mesmo tempo, havia estalado no norte da Índia forte disputa com a China, a propósito de uns pequenos território fronteiriços, mas aqui a Índia não se atreveu a promover a sua ocupação militar...
Enfim, tudo isto é passado. Em 1998, Portugal que há muito havia restabelecido a paz com a Índia, que nunca respeitou a decisão do Tribunal Internacional de Haia acerca do direito de circulação de Portugal entre os seus enclaves no interior da Índia, territórios de Nagar e Aveli, manteve uma atitude cordial com o seu antigo inimigo, atitude que não obteve nenhuma reciprocidade, justamente pelo tal complexo de colonizado.
Ainda hoje, a Índia, com apetites de grande potência, convive muito mal com a sua história e não concebe que tenha sido dominada por europeus e sobretudo por um pequeníssimo país, em território e em população, Portugal.
A História é caprichosa, mas é o que é e não o que gostaríamos que tivesse acontecido.
Julgo já ter desenvolvido suficientemente o meu ponto de vista sobre a questão, raiz da minha discordância da comparação histórica que utilizaste na tua argumentação.
Espero para ele, o meu ponto de vista, a tua compreensão, se não a tua concordância. De resto, a sua falta, nestes assuntos históricos, é perfeitamente natural.
Segundo Descartes, as nossas divergências não resultam, na maior parte das vezes, da nossa diversa racionalidade, mas tão-somente porque conduzimos os nossos raciocínio por caminhos diferentes.
Daí que ele tenha querido escrever o seu Método, termo com origem no grego "odós", caminho, ou seja, aquele meio ou caminho que a razão deveria seguir para atingir " a verdade"...
E não te maço mais. Se achares adequado, podes inserir esta prosa nos comentários ao teu artigo, com ou sem nome de autor.
Abraço. António Blanco
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