2019-11-22

O Livro do Chá, por Kakuzo Okakura


Quando fiz recentemente um post sobre a Charlotte Periand referi um artigo sobre esta sala de chá para o edifício da UNESCO em Paris



que ela projectou quando tinha 90 anos. Nesse artigo refere-se que na estadia da Charlotte Periand no Japão tomou conhecimento do livro "The Book of Tea" publicado em 1906, escrito originalmente em inglês por Kakuzo Okakura (1862-1913), pintor, escritor e estudioso da arte japonesa, um dos principais fundadores da Escola de Artes de Tóquio de que seria professor. O livro foi escrito para dar a conhecer a cultura japonesa aos ocidentais e a sua leitura teve uma influência profunda e duradoura em Charlotte Perriand.


Fiquei curioso e descobri que existia uma edição em português:

Biblioteca Editores Independentes / 
Cotovia, julho de 2007 
ISBN: 9789727951994
96 páginas,
Tradução de Fernanda Mira Barros 

que comprei.

Gostei do livro que me pareceu cumprir bem o objectivo de dar a conhecer aos ocidentais alguns aspectos importantes da cultura japonesa e da sua arte.

Não resisti a transcrever uma boa parte do capítulo intitulado "A Sala-de-Chá".

Tinha tido há alguns anos experiências desanimadoras na  conversão de digitalizações de textos para sequências de caracteres processáveis por programas como o "Notepad" ou o "Word", nessa altura dava tanto trabalho corrigir os erros da conversão como escrever tudo "à mão".

Na busca que fiz agora na internet descobri que no Google Drive fazem essa conversão, por exemplo de ficheiros .pdf com texto fotografado ou de ficheiros .jpg ou outros. Basta colocar o ficheiro em questão no Google Drive e abri-lo com o programa Docs, a conversão é feita sem necessitar de mais comandos como informam aqui (How to OCR Documents for Free in Google Drive) . Fiquei agradavelmente surpreendido com os melhoramentos do que se chamava "OCR- Optical Character Recognition", as digitalizações que eu fiz do livro até deixavam um pouco a desejar e contudo a conversão de 5 páginas do livro fizeram-se sem erros!

Numa folha de formato A4 com "Times New Roman 12" o texto do livro que passo a transcrever ocupa cerca de uma página e meia:

Páginas 56 a 61 do Capítulo “A Sala-de-Chá” do "Livro do Chá" 
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Que a sala do chá deva ser construída para servir algum gosto individual é uma imposição do princípio de vitalidade na arte. A arte, para ser inteiramente apreciada, tem de fazer justiça à vida contemporânea. Não se trata de devermos ignorar os requisitos da posteridade mas sim de procurarmos fruir melhor o presente. Não se trata de devermos desrespeitar as criações do passado , mas sim de tentarmos assimilá-las na nossa consciência. A escravizante conformidade com tradições e fórmulas agrilhoa a expressão da individualidade em arquitectura. Não podemos senão chorar aquelas insensatas imitações de prédios europeus que se observam no Japão moderno. Maravilhamo-nos com a razão pela qual, entre as nações ocidentais mais progressivas, a arquitectura havia de ser tão despida de originalidade, tão repleta de repetições de estilos obsoletos. Talvez atravessemos agora uma era de democratização na arte, enquanto aguardamos o surgimento de  algum mestre principesco que venha estabelecer uma nova dinastia. Quem dera que amássemos mais os antigos e os copiássemos menos! Já se disse que os Gregos foram grandes por nunca se basearem na antiguidade.

O termo Domicílio do Vazio, para além de transmitir a teoria taoísta do todo-abrangente, implica a concepção de uma necessidade contínua de mudança nos motivos decorativos. A sala-de-chá está vazia em absoluto, excepto naquilo que ali pode colocar-se temporariamente para satisfazer um qualquer humor estético. Algum objecto de arte especial é trazido para a ocasião, e tudo o mais é seleccionado e arranjado para realçar a beleza do tema principal. Não podemos escutar diferentes peças musicais ao mesmo tempo, sendo uma verdadeira compreensão do belo apenas possível através da concentração nalgum motivo central. Assim verse-á que o sistema de decoração na nossa sala-de-chá se opõe àquele que prevalece no Ocidente, onde o interior de uma casa é amiúde convertido num museu. Para um japonês, acostumado à simplicidade de ornamentação e à mudança frequente de método decorativo, um interior ocidental, permanentemente preenchido com um vasto aparato de quadros, estatutária e bricabraque, dá a impressão de uma mera exibição vulgar de riquezas. Para usufruir da visão permanente, até mesmo de uma obra-prima, há que ter um forte poder de apreciação, e a capacidade de sentir a arte tem de ser realmente ilimitada naqueles que conseguem viver, dia após dia, no meio de tamanha confusão de cor e forma como a que amiúde se observa nos lares da Europa e da América.

O Domicílio do Assimétrico sugere outra fase do nosso esquema decorativo. A ausência de simetria nos objectos de arte japoneses foi frequentemente comentada pelos críticos ocidentais. Também isto resulta de um desenvolvimento, através do Zenismo, de ideais taoístas. O Confucionismo, com a sua bem enraizada ideia de dualismo, e o Budismo do Norte, com a sua veneração de uma trindade, não se opuseram de modo algum à expressão de simetria. De facto, se estudarmos os antigos bronzes da China ou as artes sacras da dinastia Tang e do período Nara, reconheceremos uma busca constante de simetria. A decoração dos nossos interiores clássicos era decididamente regular no seu arranjo. Contudo, a concepção de perfeição taoísta e zen era diferente. A natureza dinâmica desta filosofia punha maior ênfase no processo através do qual se procurava a perfeição do que na própria perfeição. A verdadeira beleza só podia ser descoberta por quem completasse mentalmente o incompleto. O vigor da vida e da arte assentava nas suas possibilidades de crescimento. Na sala-de-chá cabe à imaginação de cada convidado completar para si próprio o efeito total. Desde que o Zenismo se tornou o modo de pensar predominante, a arte do extremo Oriente fez por evitar o simétrico como expressão, não apenas de acabamento, mas também de repetição. A uniformidade do padrão foi igualmente considerada fatal para a frescura da imaginação. Assim, as paisagens, as aves e as flores tornaram-se temas favoritos de representação, mais do que a figura humana, que estava presente na pessoa do próprio observador. Já estamos demasiadas vezes em evidência e, apesar da nossa vaidade, até mesmo a auto-estima está sujeita a tornar-se monótona.

Na sala-de-chá o medo de repetição é uma presença constante. Os vários objectos para a decoração de uma sala devem ser seleccionados de modo a que não se repita nenhuma cor ou padrão. Se temos uma flor natural, uma pintura de flores é inadmissível. Se utilizamos uma chaleira redonda, o jarro de água deve ser angular. Uma chávena com um vidrado negro não deveria associar-se a uma caixa para chá de laca negra. Ao colocar uma jarra ou um recipiente para queimar incenso no Tokonoma, deverá haver cuidado para que não fique exactamente ao centro, não vá dividir o espaço em metades iguais. O pilar do Tokonoma deve ser de um tipo de madeira diferente do dos outros pilares, de modo a quebrar qualquer sugestão de monotonia na sala.

Também aqui o método japonês de decoração de interiores difere do ocidental, onde vemos objectos dispostos simetricamente em prateleiras e noutros locais. Nas casas ocidentais confrontamo-nos amiúde com o que nos parece ser uma reiteração inútil. Encontramo-la ao tentar conversar com um homem, enquanto o seu retrato de corpo inteiro nos fita por trás dele. Questionamo-nos sobre qual será verdadeiro, aquele que está no retrato ou aquele que conversa, e temos a curiosa convicção de que um deles há-de ser uma fraude. Repetidas vezes me sentei a uma mesa festiva contemplando, com um choque secreto para a minha digestão, a representação de abundância nas paredes da sala de jantar. Porquê estas vítimas da caça ou do desporto retratadas, o trinchar esmerado de peixes e frutos? Porquê a disposição de baixelas familiares, recordando-nos aqueles que jantaram e estão mortos?

A simplicidade da sala-de-chá e a sua liberdade face à vulgaridade fazem dela verdadeiramente um santuário distante dos vexames do mundo exterior. Ali, e só ali, pode alguém dedicar-se à adoracão imperturbada do belo. No século dezasseis, a sala-de-chá permitia um desejado descanso do trabalho aos guerreiros valentes e aos governantes implicados na unificação e reconstrução do Japão. No século dezassete, após o desenvolvimento do rígido formalismo da regência Tokugawa, ela oferecia a única oportunidade possível para a livre comunhão dos espíritos artísticos. Perante uma obra de arte grandiosa não havia a menor distinção entre daimyo, samurai e as gentes comuns. Hoje em dia o industrialismo torna o verdadeiro requinte cada vez mais difícil por todo o mundo. Não precisaremos nós, mais do que nunca, da sala-de-chá?


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Entretanto, além das edições disponíveis em papel, descobri uma versão completa em inglês do "Book of Tea":


The Project Gutenberg EBook of The Book of Tea, by Kakuzo Okakura
 
Adenda: este post Mobilar ilustra algumas diferenças entre as decorações ocidental e japonesa

 



 

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