2019-12-12

Mahatma Gandhi (5), incluindo 4 posts prévios


Comecei por publicar um post por cada livro da série sobre o Gandi referida a seguir. Neste quinto post optei por repetir os 4 anteriores seguido de breves notas referentes ao livro 5 e ao que se passou após a independência.

Mohandas Karamchand Gandhi (1869-1948) foi um indiano notável que deu uma contribuição importante para a autodeterminação da parte indiana do império britânico

Em Janeiro de 2019 o jornal Expresso editou em 5 pequenos volumes uma autobiografia de Gandi intitulada “A minha vida e as minhas experiências com a verdade”. A obra foi escrita por Gandi na língua guzerate enquanto estava na prisão na Índia, nos anos de 1927 a 1929, portanto com quase 60 anos, cobrindo a sua vida desde a infância até 1921. A obra foi publicada em textos semanais em guzerate e posteriormente também em inglês em jornais indianos.

A Wikipédia tem uma entrada sobre o livro, como habitualmente telegráfica em português e bastante completa em inglês.

A figura de Gandi goza da  minha simpatia, ainda mais depois de ver a personagem interpretada por Ben Kingsley no premiado filme “Gandhi” de Richard Attenborough estreado no ano de 1982 e que revejo às vezes no DVD.

Gostei de ler o conjunto dos 5 volumes mas, dada a existência de descrições organizadas da obra, limitar-me-ei a comentar alguns assuntos avulsos ou alguns pormenores que me chamaram mais a atenção.

Parte I (Livro 1)

1.1) Não comer carne

Em tempos, ao falar com um colega indiano sobre o tabu de não comer carne de vaca ele explicou-me que, face às condições climáticas da Índia e à sua densidade populacional, as vacas (e os bois) eram um capital muito importante para a agricultura, quer para lavrar os campos, quer como fonte de produtos lácteos ou ainda para fornecer excrementos a usar como adubo ou como combustível. Provavelmente, dizia esse meu colega, o conselho para conservar as vacas evoluiu para uma proibição de matar e mais tarde para um tabu religioso.

Agora googlei (importance of cow taboo in indian agriculture) e apareceu-me logo este artigo da biblioteca da Universidade de Gotemburgo na Suécia “India’s sacred cow”, de Marvin Harris de Fev/1978, com a mesma tese.

Há bastante tempo que se fala do maior consumo de energia associado ao consumo de carne de uma maneira geral e da carne de vaca em especial. Ultimamente a carne dita vermelha tem sido objecto de avisos para suprimir ou no mínimo moderar o seu consumo, por razões de saúde.

Já tenho referido a minha simpatia por um consumo muito moderado de carne mas tenho achado pouco prático uma supressão completa. O consumo de carne é comum entre os animais carnívoros e omnívoros e provavelmente o nosso organismo estará adaptado ao seu consumo.

Reconheço que provavelmente reconsideraria estes meus hábitos se tivesse que matar eu próprio o animal mas essa necessidade ainda não se colocou.

Resumindo, o consumo de carne é para mim uma questão de saúde, de sustentabilidade do planeta, de economia e de existência de pessoas disponíveis para matar animais ou, num futuro próximo, de carne feita em laboratório, sem recurso a animais vivos.

Achei assim curioso que o Gandi, quando foi para Inglaterra, tenha jurado à mãe que nunca se alimentaria com carne. Mas, pensando bem, tratando-se de uma interdição religiosa, acaba por ser natural esse tipo de juramentos.

Para ilustrar algumas formas mais modernas de preparar o Cozido à Portuguesa deixo aqui esta imagem que me dizem ter sido do restaurante Tavares Rico que já mostrara aqui.



Ainda tem carne mas já muito menos do que era costume

1.2) Usos e costumes sociais

Além dos problemas relacionados com a sua alimentação vegetariana, completamente atípica  na Inglaterra dos anos 90 do século XIX e mesmo sabendo que o conhecimento de outras culturas distantes está hoje muito mais acessível à população em geral, não deixei de me admirar com o grau de ignorância do jovem Gandi sobre os usos e costumes quer da vida a bordo quer da vida quotidiana na Inglaterra.

Uma parte engraçada que conta no livro foi ter desembarcado em Inglaterra vestido com um fato de flanela branca no início do Outono (o barco saíra de Bombaim em 4/Setembro), sendo a única pessoa de Londres vestindo um fato branco nesse dia, todos os outros estando com fatos escuros, situação que Gandi recorda no livro, como lhe tendo causado grande desconforto. Faço a conjectura que o facto de os ingleses na Índia terem maior tendência para usarem cores claras terá levado o Gandi a pensar que as cores claras seriam mais apropriadas para usar em Inglaterra, se bem que durante a viagem no barco tenha vestido um fato escuro.

Se calhar foi também este trauma que o levou a vestir traje indiano de camponês quando passadas várias décadas revisitou Londres para então negociar transição da Índia para a independência.

Os códigos de vestir continuam presentes nos tempos que correm, continuando a depender do espaço e do tempo. Por exemplo os jeans, que anteriormente eram explicitamnete proibidos em muitos estabelecimentos de ensino há algumas décadas, são agora não só tolerados como mesmo “obrigatórios” se bem que “de facto” e não “de  jure”. Jovens têm-me dito que quem apareça com calças de flanela será objecto de observações que o levarão a prescindir de aparecer em público com esse tipo de roupa.

Pode ser que este post acabe por ser o único sobre o livro do Gandi, escrever sobre uma figura tão notável acaba por ser uma tarefa delicada.



Parte II (Livro 2)

2.1) Início de actividade como advogado na Índia e migração para a África do Sul

Fui surpreendido com a falta de enquadramento de um advogado recém-licenciado na longínqua Inglaterra quando iniciava a sua carreira na Índia nos finais do século XIX. Depois dum bloqueamento da primeira vez que defendeu uma causa em tribunal, Gandi devolveu os honorários que cobrara e passou a questão a outro colega advogado, passando a escrever pareceres e memorandos, evitando assim a pressão da sala do tribunal.

Dificuldades que teve posteriormente no relacionamento com funcionários da administração britânica na Índia levaram-no a emigrar para a África do Sul, para dar apoio a uma firma indiana que lá operava.

Aí descreve a discriminação de que, passado algum tempo, foi alvo num combóio quando portador de um bilhete de 1ª classe o revisor lhe exigiu que fosse para 3ª classe, dada a sua condição de “não branco”, seguido de expulsão violenta do combóio, dada a sua recusa em mudar como retratado no filme “Gandhi” de Richard Attenborough.

2.2) Religiões

Boa parte deste segundo livro aborda o contacto com cristãos e suas tentativas de o converter.

Alguns cristãos com quem contactou faziam uma interpretação abusiva da redenção dos pecados, desde que se fosse cristão podia-se pecar à vontade de consciência tranquila pois Jesus Cristo viera à terra para com a sua morte redimir todos os pecados dos fiéis. Era assim uma religião melhor que muitas outras que exigiam um esforço de praticar o bem e evitar o mal. Segundo a doutrina cristã dominante os pecados dos cristãos são perdoados face a um arrependimento e ao propósito firme de não os repetir. E na Bíblia existem referências a um Juízo Final donde se deduz que a redenção dos pecados não tem esse aspecto automático referido por esses cristãos pouco informados.

Neste período teve oportunidade de ler textos sagrados do Hinduísmo, do Islão, do Budismo,  do Cristianismo e doutras religiões, bem como introdução e comentários aos mesmos. Parece natural que os pais eduquem os filhos na religião em que acreditam e na Europa durante séculos o Cristianismo era a única religião “disponível” se bem que com heresias ocasionais e com as cisões dos séculos XI e XVI conforme gráfico que apresentei aqui.

Nascer na Índia trazia uma experiência diferente da Europa pois as pessoas não precisavam de viajar para terras distantes para entrar em contacto com crenças religiosas radicalmente diferentes das existentes na sua família. Na  minha primeira viagem à Índia fizeram-me pela primeira vez a pergunta sobre qual era a minha religião. Em Portugal partia-se do princípio que seria católico mais ou menos praticante. Com a globalização e a facilidade actual dos fluxos de informação a norma global passou a ser mais parecida com a situação indiana.

2.3) Início de actividade política na África do Sul

Foi através de reuniões de pequenas assembleias de cidadãos indianos cuja dimensão foi aumentando sucessivamente que o Gandi se foi treinando a falar em público a audiências cada vez maiores, constituindo a associação política “Congresso Indiano de Natal” que lutou pelos direitos dos indianos nessa parte de África.

Refere a necessidade de recolher fundos para a actividade política, a boa prática de não contrair dívidas para essa actividade nem de acumular dinheiro por gastar, mantendo portanto um equilíbrio permanente entre receitas e despesas.

Passei por acaso por um artigo sobre o véu islâmico e lembrei-me dum incidente do Gandi no exercício de advocacia na África do Sul em que lhe exigiram que não usasse na sala do tribunal o seu turbante.


Ao fim de 3 anos, em1896 (com 27 anos), o Gandi viajou até à Índia  onde fez alguns discursos e de onde regressou à África do Sul com a mulher, dois filhos e o filho único da irmã viúva.



Parte III (Livro 3)

3.1) Financiamento das fundações

Gandi era bastante radical neste tema como se vê nesta citação:
«...Alguns dos assim chamados grupos religiosos deixaram de prestar quaisquer contas. Os seus administradores transformaram-se em proprietários e já não são responsáveis perante ninguém. Não tenho a menor dúvida de que o ideal é que tais instituições vivam, como a natureza, do dia a dia. A organização que não conseguir apoio da comunidade não tem direito a existir como tal. As doações que uma organização assim recebe anualmente são o termómetro da sua popularidade e da honestidade da sua administração e acho que todas elas devem passar por este teste.»

Embora considerasse que existiam entidades que pela sua própria natureza não podiam ser geridas sem instalações permanentes, considerava que mesmo para essas as despesas correntes deveriam ser cobertas por doações anuais.

3.2) Educação dos filhos

Gandi apercebeu-se que as instituições educativas inglesas eram um dos pilares do império britânico pelo que chegou a aconselhar os jovens indianos a abandonar esses estudos: “em 1920 convocou jovens a sair das das cidadelas da escravidão – as suas escolas e faculdades. Disse-lhes que era muito melhor permanecer sem instrução e quebrar pedras, em nome da liberdade, do que receber educação superior atados aos grilhões da escravidão”.

Porém, foi incapaz de simultaneamente fornecer alternativas quer através de novas instituições educativas quer através de formação dentro da própria família, para a qual dispunha de tempo insuficiente para essa tarefa, dadas as suas actividades em prol das comunidades indianas.

Este foi um ponto de discórdia com os filhos que se consideraram prejudicados pela falta de instrução escolar.

3.3) Castidade

Os seres humanos são sujeitos a atracções fortes para garantir a sua sobrevivência e a sobrevivência da espécie. Essas atracções são muitas vezes premiadas por sensações muito agradáveis como por exemplo na alimentação ou no sexo, podendo transformar-se em obsessões. As sociedades tentam evitar essas obsessões através de regras morais a que corresponde a virtude da temperança ou de interdições eventualmente religiosas.

Gandi, depois de ter gerado alguns filhos convenceu-se que as relações sexuais deviam ter a procriação como única finalidade, considerando que fazer um voto de castidade o ajudaria a uma abstinência total, um conceito que designa por Brahmacharya.

Às “tentações da carne” na cultura cristã corresponde a “tentação da ascese”, fazendo o controlo através da supressão do impulso. A supressão absoluta da pulsão para comer não é aplicável de forma permanente pelo que os jejuns, se bem que existam, não podem ser para sempre pois sem limite de tempo são incompatíveis com a vida. Já em relação à pulsão sexual, a sua supressão total tem sido adoptada na vida monástica de várias religiões. Poderá ser benéfica para casos específicos, seria certamente nociva se imposta à maioria da população.

3.4) A vida de um carneiro

Durante estadia em casa de Gokhale, um seu mentor, Gandi visitou um templo da deusa Kali onde estavam a sacrificar muitos carneiros. Não aprovo o sacrifício de animais a divindades se bem que presuma que seja uma forma de fornecer proteínas a alguns grupos sociais.

Fiquei contudo chocado com a frase de Gandi “Para mim a vida de um cordeiro não é menos preciosa do que a de um homem”. Compreendo que uma pessoa adira ao vegetarianismo se bem que na natureza existam animais carnívoros. Comer carne é portanto uma actividade natural, o mesmo se podendo dizer de ter uma dieta exclusivamente vegetariana dado que existem espécies herbívoras, que se abstêm de comer carne. Mas é para mim incompreensivel não se sentir maior afinidade com um seu semelhante do que com outra espécie animal.

3.5) Darbar

Na Índia ocorriam reuniões dos governantes com os seus súbditos chamadas “Darbar” ou “Durbar” em inglês, eram formas periódicas de prestar vassalagem. Naturalmente durante o domínio britânico os governantes ingleses organizavam durbars para os quais convocavam os marajás na condição de vassalos.

Escreve o Gandi neste livro que os marajás eram nessas ocasiões forçados a usar sedas e jóias como se fossem mulheres, tratando-se de uma forma de humilhação imposta pelos ingleses.

Por curiosidade googlei Durbar e fui dar a este artigo do jornal Economic Times com estas fotos tiradas de um Durbar realizado em Delhi na semana passada, portanto em Nov/2019.

Constato que a palavra Durbar, como tantas outras, tem mudado de significado e será agora usada para reuniões sociais apresentando novas propostas de indumentárias.

Gostei muito destes vestidos embora não aprecie as jóias penduradas no nariz desta mulher



e constatei que afinal o uso de sedas e de jóias pelos homens nestas reuniões sociais



talvez faça parte da cultura indiana não sendo uma imposição do colonizador britânico.


Parte IV (Livro 4)

4.1) Discordância crescente

À medida que escrevo sobre esta autobiografia do Gandi vou notando um aumento do número de temas em que tenho uma discordância forte em relação a muitas das opiniões do Gandi.

Dada a minha formação de engenheiro e nulo activismo político, tirando a manifestação de uma ou outra opinião sobre a governação aos amigos e em poucos posts deste blogue, embora reconheça o papel muito importante do Gandi na recuperação que a Índia fez da sua soberania, tenho alguma dificuldade em entender uma eventual relação necessária entre o seu trajecto político e as suas opiniões “pré-iluministas”.

4.2) Teosofia

O livro refere que Gandi foi contactado, ainda na África do Sul, por membros da Sociedade Teosófica (Teosofia seria Sabedoria Divina, assim como Filosofia é “Amor pela” Sabedoria) e quando se apercebeu que esperavam dele contribuições para essa sociedade ter uma melhor compreensão da religião hinduísta acabou por ter um estímulo para ler melhor os clássicos indianos, designadamente o Bhagavad-Gita que referi aqui.

Achei estranha a referência de Gandi à memorização que fez de trechos do Bhagavad-Gita, parece-me semelhante a decorar o Corão, na religião cristã a memorização limita-se a meia-dúzia de orações, mesmo durante a celebração da missa o padre tem um livro a servir de ponto para dizer as palavras correctas sem ter que recorrer à memória.

Na liturgia actual, os serviços de notícias da TV, os apresentadores são ajudados por um teleponto para não se enganarem a comunicar as notícias do dia.

Bem sei que quando foi inventada a escrita os contadores de histórias, que tinham anteriormente de as decorar, lamentaram a descoberta desta nova tecnologia, não era a mesma coisa saber uma história de cor ou limitar-se a ler um livro e estes hábitos perduram por séculos, dizem-me que no Irão ainda existem contadores de histórias (https://www.utne.com/arts/irans-streetwise-storytellers-naghals ), que actuam na rua para quem quer ouvir.

Dando o benefício da dúvida, talvez seja um treino na arte da retórica pois tenho lido que o Bhagavad-Gita tem muitos bons exemplos de troca de argumentos.

Na referência à Teosofia na Wikipédia vi o nome de Annie Besant e googlei (annie besant indiana jones) pois julgo ter ouvido falar da Teosofia pela primeira vez na série da TV “Indiana Jones – Crónicas da Juventude) onde o jovem Indiana Jones visitava gente no princípio do século XX, gente essa que ficaria depois muito célebre.

Fui dar ao episódio “The Young Indiana Jones Chronicles - Journey of Radiance” de 1hora e 35 minutos disponível no Youtube e que deixo aqui


4.3) Leite e Caldo de carne

Existem plantas venenosas em que a ingestão de uma pequena quantidade pode causar grande mal-estar ou mesmo a morte. Distinguir as comestíveis das venenosas foi uma tarefa difícil e arriscada, ainda hoje ocorrem desastres quando se confundem cogumelos selvagens, foi uma das áreas de conhecimento em que foi mais útil a transmissão de informação entre os seres humanos.

Não conheço nenhuma proibição de indole religiosa em relação à ingestão de qualquer planta específica (os jejuns são indiscriminados) mas existem proibições de porco para muçulmanos e judeus, abstenção de sangue e produtos derivados para muçulmanos (através das técnicas prescritas para matar os animais) e de vaca para os hindus.

As proibições dos muçulmanos parecem sensatas para a região e época em que foram estabelecidas.

Também existiam razões para a proibição hindu do consumo de carne de vaca, uma delas era que as vacas podiam fornecer leite para consumo humano. Ora o Gandi, ao tomar conhecimento do tratamento que davam às vacas leiteiras achou por bem prescindir do leite da vaca e fez um voto de abstinência de leite de vaca e de ovelha. Entretanto adoeceu (o que é frequente na autobiografia) e embora lhe tenham lido textos sagrados que diziam que em caso de doença grave se devia abrir uma excepção à renúncia de leite, ele só muito tarde condescendeu em beber leite de cabra, que não estava no voto embora o Gandi considerasse que o estava a quebrar.

Doutra vez em que a mulher foi sujeita a uma operação e o médico considerou essencial para a recuperação a ingestão de caldo de carne o Gandi, ouvida a mulher, optou por levá-la para casa pois o médico recusou-se a tê-la no hospital sem a possibilidade de lhe dar caldo de carne. O único ponto positivo neste comportamento que me parece infantil é que faziam os testes neles próprios relatando os resultados a outras pessoas.

Mas tudo isto me parece muito disparatado. Descobrir uma alimentação saudável e descobrir quais os tratamentos mais eficazes para evitar e combater as doenças requer a cooperação de multidões de pessoas que dedicam toda a sua vida a estudar, aplicar e testar de forma sistemática uma multiplicidade de informações e de processos. E mesmo assim, dada a complexidade dos problemas, muitos dos comportamentos e processos que pareceram promissores vêm a revelar-se menos bons passados uns anos e vice-versa. Tentar descobrir processos que se possam aplicar à generalidade da população a partir de esperiências feitas no próprio corpo parece-me praticamente inútil.

E envolver a religião nestes assuntos parece-me contraproducente. Nutrição e Medicina devem ser deixados ao método científico de elaboração de hipóteses e teorias e sua verificação com possibilidade de as rever sempre que surjam factos novos que as infirmem.

4.4) Binóculo ao mar

Existe ainda a descrição de uma discussão tão continuada sobre a necessidade de levar uma vida simples que o Gandi acabou por convencer numa viagem de barco um dono de um binóculo a atirá-lo literalmente pela borda fora para não ter de o ouvir mais. Um binóculo poderá ser inútil para alguns donos, eu próprio tenho um que tem tido pouco uso, mas parece-me profundamente errado deitar fora um instrumento precioso e potencialmente muito útil. Será porque os camponeses indianos não precisam de binóculos e portanto não é razoável ou justo ter um binóculo? Parece uma rejeição de tudo o que vem do mundo industrializado o que é também completamente errado.


Até o Tintin foi uma vez salvo por causa duns binóculos!





Parte V (Livro 5)

5.1) Finalmente na Índia

Constato agora quando reabro este livro 5 que não escrevi notas numa das primeiras páginas como faço habitualmente. Presumo que a explicação será do filme Gandhi de Richard Attenborough mostrar com mais pormenor a actividade do Gandi na Índia, onde regressou vindo da África do Sul em 1915, com 45 anos, e onde se identificou com os mais pobres dos pobres e resistiu à opressão imperial britânica com métodos não violentos.

Esta autobiografia, que relembro ter sido escrita entre 1927 e 1929 enquanto na prisão, cobre a vida do Gandi desde o nascimento até 1921, "altura em que passou a liderar o Congresso Nacional Indiano conduzindo campanhas para reduzir a pobreza, expandir direitos da mulheres, incentivando coexistência de diversas etnias e religiões, acabando com a “intocabilidade” e sobretudo para obter a independência.

Para se livrar do jugo do colonizador rejeitou quase a totalidade dos elementos culturais que tinham chegado à Índia através da influência estrangeira cos colonizadores levando o pensamento técnico-científico a níveis pré-iluministas e queimando bens materiais, como por exemplo roupas, por terem sido manufacturadas na Grã-Bretanha. Considero esta radicalidade compreensível mas desnecessária.

O Gandi achou que a sua vida a partir de 1921 passou a ser tão pública e tão fortemente interligada com tantas outras pessoas que não faria sentido revelar algo que já era tão público e apenas sobre ele pois era impossível destrinçar a contribuição dada individualmente por cada membro do Congresso que trabalhou com ele.

5.2) Conhecimentos já falecidos

Tendo o Gandi escrito esta autobiografia entre 58 e 60 anos de idade impressionou-me o número de pessoas que conheceu e que já tinham morrido. Claro que os políticos interagem com um número muito maior de pessoas do que a média da população pelo que é de esperar que tenham mais pessoas conhecidas que já faleceram.

Notar porém que em muitos casos a esperança média de vida à nascença é muito baixa por causa da elevada mortalidade infantil mas para países em que morrem muitas crianças a esperança de anos de vida restante aumenta na passagem da adolescência para a idade adulta. Como os políticos com quem o Gandi interagiu foram conhecidos quando já eram adultos talvez não fosse de esperar que tantos já tivessem falecido.

5.3) Resultados de longo prazo

Depois da independência e com a instituição de um regime democrático acabaran as fomes letais que ocorriam de vez em quando no tempo do império mas permaneceu a subnutrição.

A intocabilidade foi suprimida de jure mas não acabou de facto, os direitos das mulheres têm melhorado lentamente mas permanece um déficit anómalo de jovens do sexo feminino, indiciando abortos selectivos e mesmo infanticídios favorecendo predominância de rapazes..

Com a ascensão do partido BJP (Bharatiya Janata Party) ao poder aumentaram as tensões entre muçulmanos e hindus e por exemplo este artigo da New Yorker é muito crítico da situação actual.

Observei  progressos notáveis nas viagens à Índia que fiz entre 1990 e 2012, no entanto a desigualdade na Índia tem aumentado mais do que noutrras zonas do globo, conforme se constata neste gráfico publicado publicado no le Figaro:



Depois das suas riquezas serem drenadas para fora da Índia pelo sistema capitalista parece compreensível a aproximação a Moscovo, se bem que não alinhada, pouco depois de ganhar a independência. O colapso do sistema soviético levou a uma abertura maior aos mercados o que, conjugado com a permanência da cultura de castas, colocou a Índia no topo da desigualdade nesta comparação com outras grandes áreas económicas.


Sem comentários: