"Custe o que custar" é uma expressão idiomática em português, com equivalentes noutras línguas, adequada para pequenos problemas e para alguns grandes, como por exemplo o famoso “We will do Whatever it takes to save the Euro” de Mario Draghi.
Contudo, na maior parte dos problemas com alguma dimensão, é uma receita
para incorrer em custos excessivos de natureza diversa, designadamente
económicos, sociais, ambientais, de saúde, etc.
Como engenheiro ouvi vezes sem conta que os engenheiros têm tendência para desprezar os custos e ocorre-me dizer, citando um amigo arquitecto, que em todas as profissões existem bons e maus profissionais, na maior parte dos casos a minimização do custo de uma acção de engenharia ou de qualquer outra profissão é uma actividade essencial e cuidadosamente levada em conta, embora a ausência explícita de restrições seja uma tentação para aparecerem exageros.
Como exemplo de edifício em que alegadamente não se definiram limites de preço mostro “Hongkong and Shanghai Banking Corporation Headquarters” numa foto que tirei em Hongkong em1990 que já mostrei no post “A Revolução Cultural na China (1966-1976)”.
Foi projectado pelo gabinete de Norman Foster, construído de 1983 a 1985, é um edifício notável que aprecio, tendo sido na altura o mais caro edifício de todo o mundo, consequência bastante influenciada pela ausência de restrições orçamentais.
Ouvi o arquitecto argumentar numa entrevista que os projectos do seu gabinete não eram sempre caros, aquele edifício de Hongkong tinha características específicas, dando como contra-exemplo o metropolitano de Bilbau, também projectado pelo seu gabinete e que tinha tido soluções muito económicas, reforçando assim a minha convicção que a ausência de restrições favorece excessos.
Como segundo exemplo de ausência de restrições escolho o recente caso do Processo Influencer que causou a demissão do primeiro-ministro António Costa em 7/Nov/2023, ao ser revelado no sítio do Ministério Público (Comunicados) em Nota para a comunicação social – Inquérito DCIAP (de 07-11-2023) no último parágrafo que
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No decurso das investigações surgiu, além do mais, o conhecimento da invocação por suspeitos do nome e da autoridade do Primeiro-Ministro e da sua intervenção para desbloquear procedimentos no contexto suprarreferido. Tais referências serão autonomamente analisadas no âmbito de inquérito instaurado no Supremo Tribunal de Justiça, por ser esse o foro competente.
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É frequente que na presença de críticas à actuação de agentes de qualquer instituição surjam os argumentos seguintes:
1) que não havia alternativa válida ao tipo de actuação do agente, e na ausência deste tipo de actuação o agente ficava impedido de realizar a sua missão;
2) que eventuais efeitos colaterais da sua actuação não eram da sua responsabilidade.
Na ausência de explicações públicas da Procuradora-Geral da República socorri-me das declarações de Manuel Soares, presidente da Associação Sindical dos Juízes, no programa Grande Entrevista da RTP conduzido por Vítor Gonçalves no Episódio 46 de 22/Nov/2023:
- quanto ao ponto 1) argumentou que os magistrados do Ministério Público (MP) não podiam manter o segredo sobre a existência de uma investigação criminal ao PM (Primeiro-Ministro) por questões de obrigações processuais (o PM fora referido no processo) e de transparência, a fim de evitar serem acusados de favorecimento do PM.
As “obrigações processuais” consistiriam na necessidade de emitir uma certidão de que iriam investigar o PM no Processo Influencer, pois pretendiam incluir a investigação do PM neste processo em vez de desencadear um processo autónomo. A presença dessa certidão no processo levaria a que, ao este ser consultado pelos advogados dos arguidos estes tomassem conhecimento da existência da investigação ao PM, resultando perigo de que esta informação fosse divulgada e o Ministério Público fosse acusado de falta de transparência.
Resumindo, quando num processo de averiguações algum dos suspeitos refira o PM, o MP teria que investigar o PM e sempre que investigasse o PM teria que o comunicar ao público em geral.
- passando ao ponto 2) argumenta-se que o PM se demitiu por sua iniciativa e que era possível continuar em funções, não sendo assim o MP responsável pela demissão do PM.
Na opinião publicada, perante o comunicado da procuradoria, a esmagadora maioria dividia-se apenas entre os que diziam que o PM fez bem em apresentar a demissão e os que diziam que não lhe restava outra alternativa. Havia uma muito pequena minoria alegando que perante o comunicado poderia não se demitir (MP e próximos) e praticamente ninguém dizendo que devia permanecer no cargo.
Assim, não me ficaram dúvidas que o MP foi irresponsável ao alegadamente ignorar a quase fatalidade da demissão do PM perante o comunicado emitido. Espero que no futuro eventuais investigações ao PM sejam mantidas em segredo até parecer indispensável interrogá-lo, o que deverá corresponder provavelmente a indícios tão fortes que correspondam à sua constituição como arguido.
Lamento ter que fazer estas considerações baseado na entrevista do juiz Manuel Soares em vez de em declarações da Procuradora-Geral da República. Admito que a Procuradora não se dê bem com entrevistas mas, perante a perturbação nas instituições causada por esta actuação do MP, tinha a obrigação de publicar uma nota explicativa.
Adenda em 2/Dez/2023, citando parte de artigo de Miguel Sousa Tavares em "Desculpem-me insistir" no Semanário Expresso#2666 - 1/12/2023:
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Peguemos no caso MP vs. António Costa, que finalmente mereceu uma curta explicação da procuradora-geral da República, Lucília Gago. Na esteira dos argumentos que lhe foram sugeridos pelo sindicato dos magistrados do Ministério Público, “esclareceu” ela que “havendo notícia de um crime”, o MP é “obrigado por lei a abrir um inquérito” e, depois, por um “dever de transparência”, a dar-lhe publicidade. Nenhuma das razões colhe. Primeiro, não havia notícia de qualquer crime contra António Costa. O facto de em duas ou três escutas telefónicas os intervenientes dizerem que queriam falar com o primeiro-ministro ou que iriam falar com ele não indicia: a) que o tenham feito; b) que o primeiro-ministro os tenha ouvido e concordado com a sua pretensão; e c) que esta fosse ilegítima ou criminosa. Pelo que não havia razão alguma para a abertura de um inquérito à actuação do primeiro-ministro; quanto muito, o MP prosseguiria a investigação em relação aos restantes suspeitos e se, no decurso desta, surgissem indícios sérios contra o primeiro-ministro, então, sim, abriria o tal inquérito. Mas mesmo que tenha entendido o contrário, nada, nenhum “dever de transparência”, obrigava o MP a tornar isso público: todos os dias o MP recebe dezenas de participações criminais e abre inquéritos contra denunciados ou suspeitos sem que, até por razões de eficácia, vá participar ao denunciado, particular ou publicamente, que está a investigá-lo. É óbvio e indesmentível que quando Lucília Gago escreve o tal “parágrafo assassino” sabia ao que ia. E, se não sabia, é porque não entende português — o que é muito grave nas funções que desempenha.
Durante toda a semana assisti a um impressionante blitz de defensores da PGR e da actuação do MP, insistindo, nomeadamente, que António Costa não se demitiu por causa do tal parágrafo, mas de tudo o resto: as suspeitas sobre o seu chefe de gabinete, o “melhor amigo”, dois ministros, os €75 mil no gabinete de Vítor Escária. Concedo que muito provavelmente ele demitir-se-ia depois de saber tudo isso. O problema é que demitiu-se não depois mas antes de saber tudo isso: o comunicado da PGR é ao meio-dia, Costa demite-se às 13h, o gabinete de Escária só é buscado da parte da tarde e os fundamentos das suspeitas do MP sobre os implicados só são conhecidos ao final do dia, já as agências de notícias internacionais titulavam: “PM de Portugal demite-se sob suspeitas de corrupção”. O resto da história conhecemo-lo. Talvez pudéssemos mesmo encenar uma peça de teatro sobre ela, chamada “Os Salvados do 7 de Novembro”, tendo como protagonistas principais Marcelo Rebelo de Sousa, Pedro Nuno Santos, Luís Montenegro e André Ventura.
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