2022-05-25

Pesca do Atum


Há algum  tempo que a Maria Dulce Fernandes publica diariamente no blogue “Delito de  Opinião” os “temas do dia de hoje”.

Constatei que é raro o dia em que não exista mais do que um tema, 365 temas é um número insuficiente para celebrar um deles em cada dia do ano.

No dia 2 de Maio de 2022 foi o dia do Atum em que apresentou um filme feito em 1968 sobre a pesca do atum no Algarve

 

Além de gostar do filme de 8 minutos lembrei-me de ter lido um texto no liceu sobre esta actividade. 



Fui à procura no livro escolar único de 1960 “A Nossa Pátria” de que mostro imagem da capa.

Era o livro de leitura de Português do que seria actualmente o 6º ano do Ensino obrigatório, nessa altura o 2º Ano do 1º ciclo do Liceu.

Nele constava um texto intitulado “UMA COPEJADA DE ATUM” da autoria de Manuel Teixeira Gomes, distinto algarvio nascido em 27 de Maio de 1860 na Vila Nova de Portimão,

Frequentou o ensino primário no Colégio de S.Luís Gonzaga em Portimão, provavelmente dirigido discretamente por Jesuítas.

Foi  embaixador de Portugal em Inglaterra (ministro de Portugal em Londres a partir de 1911), cabendo-lhe a espinhosa tarefa de obter o reconhecimento pela Inglaterra imperial (onde se abrigara o rei exilado) da 3ª República a ser instaurada na Europa, antes de nós só a Suíça (que nem fora monarquia) e a França.

Em 6/Ago/1923 é eleito Presidente da República, tomando posse em 5/Out/1923. Perante a instabilidade insanável da vida política portuguesa resigna do seu mandato em 11/Dez/1925, embarcando em 17/Dez no paquete grego Zeus, não regressando mais a Portugal. Instalou-se em 1931 na Argélia, onde faleceu em 18/Out/1941. Estaria mesmo farto dos portugueses...

Tirei uma foto de duas páginas do livro escolar

 


mas achei melhor ir buscar o original que encontrei numa edição da Expo 98 na biblioteca do Agrupamento de Escolas de Aveiro que se pode obter para descarregar googlando o nome do ficheiro pdf “Agosto Azul; Uma Copejada de At - Manuel Teixeira Gomes.pdf”. Este ficheiro contém dois contos, o “Agosto Azul” e “Uma Copejada de Atum”.

Nesta edição da Expo98 constatei que o texto no livro escolar é uma adaptação ligeiramente abreviada do texto original que parece ser uma carta endereçada a destinatário desconhecido, escrita em Tunes, presumo que da Tunísia pois está datada de 24/Dez/1926.

Repeti a adaptação do texto do livro escolar, adicionando três pontos nas omissões. Quem quiser ler a obra completa poderá obtê-la como refiro acima.

O texto da edição escolar é o seguinte:

«
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I – NO ARRAIAL DA ARMAÇÃO

A costa, a leste de Portimão, continua alcantilada e pitoresca em algumas léguas, mas de difícil acesso, com pequenas e raras praias, na boca de apertadas ravinas. Assim é a praia do Carvoeiro, que serve aos habitantes de Lagoa para banhos e passeio.

Aí tinham uns amigos meus o arraial de uma armação de atum, lançada mesmo em frente da praia, a três ou quatro quilómetros de distância, no mar alto, que me proporcionou, pela primeira vez, o espectáculo de uma copejada. 

Era no fim de Maio, com vento mareiro e águas claras, indispensáveis para trazer à costa os cardumes de atum, que se assusta e foge à menor sombra que lobriga. Esperava- se farta passagem de peixe e eu recebera aviso para comparecer.

Logo à minha chegada, ao cair da tarde, fizeram sinal da armação de que um «bom cardume» de peixe se aproximava. A notícia causou profunda sensação, pois as vigias, sempre cautelosas, o mais que anunciam, de ordinário, é o aparecimento de alguns peixes, «poucos», e eu fui recebido, pelos meus amigos, festivamente, como se a minha presença tivesse chamado o atum.

O director técnico da sociedade (Joaquim Negrão...) seguia, por um grande óculo de alcance, o que se passava na armação, e ia comunicando as informações colhidas. O atum era muito, acudira bem ao «atalho», e entrara no copo, onde esperaria a madrugada seguinte para ser pescado.
...
II – A ARMAÇÃO, COSTUMES DO ATUM

Depois do jantar o Negrão leccionou-me um pouco sobre o que era uma armação, e o que conhecia dos costumes do atum.

O covo ou copo da armação, que é um longo e perfeito rectângulo, está fixo no fundo do mar por pesadas fateixas, a que o prendem cabos de aço; e à superfície segura-se na amurada das grandes lanchas que o cercam, das quais a maior, chamada de «testa», ocupa uma das extremidades mais estreitas do rectângulo. Na extremidade oposta está a entrada - «as portas» - da armação, precedida de um jogo de redes, cujos movimentos permitem encaminhar o peixe para dentro do copo; esta operaçâo chama-se «atalhar». A começar das portas, e estendendo-se muito pelo mar fora, segue uma rede de metro e meio de altura, suspensa em bóias de cortiça, e esticada por pesos de chumbo, a que se chama «rabeira».

O atum, que anda em cardumes, procurando a proximidade da costa para desovar, se entra na faixa de água limitada pela rabeira e lhe vê a sombra, assustadiço, como é, em vez de tentar atravessá-Ia vai-a seguindo mansamente, à busca de saída, e mansamente cai nas portas da armação, que se fecham apenas o apanham dentro.

Antes de desovar, o atum chama-se «de direito», e as armações que o apanham têm a boca voltada para oeste, de onde ele vem na derrota do Estreito; essas mesmas armações, postas com a boca voltada para leste, servem para o atum «de revés», que regressa em poucas semanas, já desovado e magríssimo. Daí a grande diferença de valor entre os atuns de direito e de revés, sendo aqueles aproveitados especialmente em conservas e estes para a salga.
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A copejada faz-se levantando uma rede móvel chamada «céu», que está no fundo do copo, e vai lentamente trazendo o peixe à superfície da água, onde ele é apanhado pela gente da companha debruçada sobre as barcas, e tendo preso no pulso direito, por uma corda, um pequeno arpão móvel. O peixe corre em círculo à roda das barcas, e, quando lhes passa ao alcance, o pescador mete-lhe o arpão e puxa-o para dentro da barca, onde ele entra e cai pelo seu próprio impulso, desprendendo-se do arpão automaticamente, apenas transpõe a borda da lancha.
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III – A COPEJADA

Ainda a madrugada não dava sinais de romper, já nos encontrávamos no bote que nos devia levar à armação. Durante a noite o vento fizera-se mais de terra, mas ainda de má feição; a distância era grande e havia muito que bordejar para vencer a tempo de assistir ao começo da copejada. Fazia luar; a ondulação do mar, espaçada e surda, era como que abafada por aquela silenciosa luz branca.

O caminho fez-se mais depressa do que julgávamos, e quando entrámos na barca da testa, onde devíamos assistir à pesca, a lua não empalidecera ainda de todo e apenas a nascente dois fios de carmim, tenuíssimos, assinalavam, no céu polido e esverdinhado, o ponto por onde ia surgir o Sol.
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Rompeu, por fim, o Sol. apressado e quente, sem que tivéssemos prestado atenção ao seu glorioso aparecimento, e começou a concertada faina de levantar o céu da armação.
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Apenas a água principiou a ferver, com a revolução do peixe que se aproximava da superfície, rompeu a mais tremenda gritaria e algazarra, de que tenho memória, e que ainda redobrou ao aparecimento dos primeiros atuns. Começou então a toirada.

Sucedeu que o primeiro atum arpoado se escapou, e caído à água com tal velocidade parecia voar, jorrando sangue que o acompanhava de um rastro de púrpura. A assuada ao marujo infeliz foi medonha, e vi jeitos de o atirarem também à água. Mas é que os primeiros atuns que apareciam, tendo ainda campo avonde para nadar, fugiam das barcas, enquanto os marujos, abrindo os braços, e com grandes pancadas no costado das lanchas, os incitavam às sortes, como se fossem bois.

Isso, porém, durou pouco. Entre borbolhões de espuma assomou logo uma densa camada de peixe, e tão apertada pelo costado das barcas, que os marujos quase lhe davam às cegas, levantando uma cabeça a cada arpoada.
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O sangue e a água, misturados, soltavam-se aos cachões, envolvendo os peixes em línguas de púrpura cristalina, e ao centro da rede faziam remoinho, abrindo um poço fundo e largo, por cujas paredes transparentes giravam, desvairados, os grandes bichos cintilantes.
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O Negrão, aproximando-se do meu grupo, para falar com o mestre da companha, bradou-me: - «Agora vou-lhe mostrar um quadro da mitologia. - «Vamos lá ver», repliquei, se bem que pouco disposto ao entusiasmo, já embotado pela prodigiosa cena a que assistia. Depois de falar com o mandador, o Negrão gritou para a ré da barca: - «Bem, se não há mais nenhum, que venha cá o Serafim ... » - «O Serafim, o Serafim!» pôs-se a clamar quase em coro a marujama, e um rapaz atarracado, embezerrado, e arruivado, como que lhe veio nos braços, pela amurada fora, até onde o Negrão estava. E ouvi este que lhe dizia: - «Não quero desculpas; é para já ... »

Então o rapaz, depois de olhar entre envergonhado e receoso para o meu grupo, principiou a despir aquela quantidade de trapalhadas em que os pescadores se envolvem, mesmo de Verão, quando vão para o mar. E apareceu admiravelmente bem proporcionado e forte, com um tronco de coiraça grega, abaulado no peito e estio no ventre, os quadris estreitos, mas as coxas volumosas e de formidável musculatura. Tirante os pulsos, o pescoço, e os pés, que andavam tostados do sol, todo ele era de uma brancura marmórea. De pé, na borda da lancha, erguendo os braços e juntando as mãos, tomou um leve balanço e jogou-se à água, sumindo-se entre os peixes.

Mas em poucos segundos ele surgia, quase na extremidade oposta do copo, montando um enorme atum, que, para se desembaraçar da estranha carga, entrou a correr vertiginosamente, saltanto sobre o outro peixe que lhe impedia a passagem, ou mergulhando subitamente, para reaparecer alguns metros mais longe, sempre com o tritão às costas, agarrado com a mão esquerda a uma das alhetas, agitando a outra mão no ar, e dando gritos de triunfo. O rapaz estava transfigurado; resplandecia de audácia e mocidade, entre as grandes salsadas de água rubra que lhe lambiam o corpo, e luzia, ao sol, como um vivo mármore cor-de-rosa.

Animados pelo exemplo, outros rapazes se atiravam à água, para cavalgar os peixes, mas nenhum tinha a segurança heróica, nem a graça helénica do Serafim.

A pesca fechou acima de mil e trezentas cabeças. Mais de «treze centos», como dizia a gente da companha. Fora, na verdade, uma copejada maravilhosa.
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»

Fez-me impressão as “condições de trabalho da época” notei que ninguém usava luvas, nem para puxar as redes nem para segurar os arpões que espetavam nos peixes. Notei a prudência dos pescadores sempre vestidos com calças e camisas que, além de os protegerem dos raios solares dada a pouca disponibilidade de cremes protectores nessa época, talvez os protegessem também das barbatanas dos Atuns que me parecem sempre perigosas.

Actualmente a única armação que existe no Algarve é explorada por japoneses ao largo da Fuzeta, apanham o atum de revés, magro depois de ter desovado no Mediterrâneo e alimentam-no na armação até ter peso ideal para ser enviado para o Japão.

Segundo li, além das armações no Sotavento, de que as âncoras enterradas na areia da praia do Barril são uma das memórias que restam, existiam outras armações também no Barlavento.

 

 https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Cemit%C3%A9rio_de_%C3%A2ncora.jpg


Volto a mostrar o Colégio dos Jesuítas em Portimão que já mostrara aqui 

 

 e três jarrinhas que pertenceram a Teixeira Gomes


actualmente no Museu do Oriente que mostrei aqui.
 

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