Desde que visitei Macau em 1990 que me interrogo sobre qual será a razão para os chineses manterem uma forma de escrita tão complicada.
A melhor explicação que encontrei até agora foi que tiveram inegável sucesso na normalização de um conjunto de símbolos usados na escrita por toda a China e que esse sucesso foi também a razão para não mudarem. Quando uma pessoa vê as críticas que apareceram em Portugal sobre o “Acordo” ortográfico de 1990, do qual embora eu discorde reconheço tratar-se de uma alteração pequena, é fácil imaginar a dificuldade em alterar uma escrita muito mais complexa, normalizada com sucesso e grande esforço numa área geográfica enorme, numa altura em que os meios de transporte eram muito lentos.
Na Europa o latim permaneceu a língua da Cultura e da Ciência durante centenas de anos em que quase só o clero sabia ler e escrever. Na China esse papel era desempenhado pelos literati, administradores do império, guardiões da cultura e provavelmente da contabilidade, que não só teriam pouco entusiasmo em alterar uma escrita que tinham aprendido com tanto esforço, como poderiam mesmo pensar que era melhor mantê-la complicada para manter os letrados longe da crítica da generalidade da população.
Esse comportamento dos letrados teria alguma analogia com a atitude da igreja católica que considerou durante muito tempo perigoso que os laicos tivessem acesso directo aos textos sagrados da Bíblia, sem uma autoridade eclesiástica de permeio para fazer a sempre necessária interpretação do que estava escrito.
O movimento protestante na Europa caracterizou-se, entre outras coisas, pela importância dada ao acesso directo à Bíblia pelos crentes, favorecendo assim a alfabetização do povo e uma menor dependência dos cristãos protestantes face à autoridade do clero.
No livro “The story of Writing” que referi em posts anteriores lê-se que no antigo Egipto existiu um alfabeto simples que foi abandonado pelos hieróglifos. Penso que também o clero egípcio seria muito cioso dos conhecimentos que ia adquirindo e que não estaria interessado na alfabetização em massa da população.
Um dos problemas mais difíceis duma escrita ideográfica está na ordenação dos caracteres pois a ordem alfabética não pode ser usada. Os dicionários existentes classificam os caracteres em várias classes, cada uma com centenas ou milhares de elementos, o que acba por ser uma ajuda fraca e difícil pois existem sempre casos em que um carácter poderá pertencer a mais do que uma dessas classes. A certa altura começou-se a ordenar os caracteres, provavelmente dentro de cada classe, pelo número de “pinceladas” (strokes) que o constituem, dizem que é frequente ver chineses a usar os dedos para contar esse número de pinceladas que pode chegar a 33 para caracteres mais complicados. Refiro “pinceladas” e não traços porque, além de na caligrafia clássica se usarem pincéis e não canetas de aparo, muitos ideogramas são constituídos por elementos com a forma de linhas com 2 ou mais segmentos de recta.
Uma vez num almoço com chineses, em que eu lhes mostrava meia dúzia de caracteres que sabia desenhar, uma chinesa disse-me que eu “desenhava” (draw) os caracteres em vez de os “escrever” (write), dado que nem fazia os traços na ordem pré-estabelecida, nem os ligava de forma contínua quando essa ligação existia. Mesmo para saber quantas pinceladas constituem um dado carácter é preciso conhecer as regras de os escrever.
No livro “The story of writing” refere-se que é provável que a computerização das sociedades modernas aumente a pressão para os chineses abandonarem os ideogramas, dados os desafios de representação destes em comparação com as letras do alfabeto. Tenho dúvidas sobre a validade desse argumento dado que os equipamentos de informática têm aumentado imenso o número de pontos (pixels- picture elements) disponíveis para representações gráficas. Por outro lado, o aparecimento de aplicações para identificar ideogramas a partir das pinceladas que os constituem (como por exemplo esta , que referi aqui ) tornam fácil a identificação de caracteres, mesmo para um principiante como eu.
Com a tomada de consciência pelos chineses, sobretudo após a guerra do ópio (1839-1842), que já não eram a civilização mais avançada do planeta, alguns deles interrogaram-se certamente sobre as vantagens de adoptarem uma escrita alfabética.
Só depois das enormes convulsões por que passou a China no século XX, foi possivel aprovar um projecto de romanização dos caracteres da língua chinesa,.
Segundo o livro que mostro aqui ao lado de um autor chinês,
em 11/Fev/1958 (11 anos depois da proclamação da R.P.C (República Popular da China em 1949) foi aprovado o projecto Pinyin, consistindo na transcrição fonética do Mandarim, a língua de Beijing falada pela maioria (70%) dos chineses.
Tem havido um esforço para que todos os chineses falem mandarim, por exemplo em Macau em 1990 a maioria da população falava apenas cantonês não compreendendo o mandarim.
Neste livro referem a existência de 8 dialectos principais da língua chinesa (em que incluem o cantonês) , enquanto que em “The story of writing” chamavam aos dialectos “regionalects” dando a ideia que abrangiam uma região grande em vez de estarem localizados, e eram verdadeiras línguas com um ascendente comum, como as línguas latinas da Europa, por exemplo o português, o espanhol e o francês.
Enquanto Alexandre Li Ching afirma que falantes de cantonês e de mandarim se entendem através da escrita (os que sabem ler e escrever), Andrew Robinson afirmava que tal se tratava de um mito e que este entendimento era impossível. Não estou em condições de avaliar quem estará mais próximo da verdade, choca-me poderem existir opiniões tão diferentes sobre este tipo de assunto. Posso contudo testemunhar que usei com sucesso o símbolo 出 (Chū) em Macau para perguntar a direcção da saída no jardim Luís de Camões, se bem que seria mais correcto usar os dois símbolos 出口 (Chūkǒu) em que o segundo significa “boca”. A pessoa a quem perguntei disse umas palavras incompreensíveis mas apontou com o dedo ou a mão qual a direcção conveniente. A escrita serve portanto para algum entendimento mas talvez apenas em níveis básicos. Notar a propósito deste exemplo que existe na língua chinesa uma tendência para usar menos monossílabos, este é um caso típico, um bocado semelhante a dizer em português “porta de saída” em vez de apenas “saída”. Esta tendência facilita o uso do pinyin diminuindo a homofonia muito frequente na lingua chinesa.
A propósito da escrita poder servir para compreender línguas afins lembro-me dum episódio ocorrido há dezenas de anos em França quando um francês referiu uma “libélule” e logo a seguir tentou explicar-me do que se tratava. Ficou surpreendido (provavelmente o meu francês inspirava pouca confiança) quando lhe disse que sabia muito bem do que ele estava a falar porque em português o nome era muito parecido.. Perguntou-me então como se pronunciava em português e quando eu disse “libélula” achou que o som era muito diferente. Constato também que os colegas espanhóis com quem falava no meu portunhol tinham muito mais facilidade em compreender o português escrito do que o português falado.
E depois de nos admirarmos por na China, um sítio tão exótico, as pessoas de regiões diferentes não se entenderem falando mas entenderem-se escrevendo, constatamos que afinal se passam situações muito parecidas entre os portugueses e os seus vizinhos espanhóis!
Citando o livro de Li Ching, “o Comité para a Reforma da Escrita Chinesa elaborou um projecto que foi publicado pelo Conselho de Ministros da R.P.C. em 28/Jan/1958 e que consiste numa lista de 515 caracteres simplificados e de 54 elementos constitutivos cuja composição simplificou indirectamente todos os caracteres integrados. Até 1994 tinham sido simplificados mais de dois mil caracteres. É esta actividade que está na origem da existência das línguas “Chinês (Simplificado)” e “Chinês (Tradicional)” no Google tradutor.
Por exemplo a palavra “porta” é representada no chinês tradicional por “門” fazendo lembrar uma porta dum saloon do farwest, enquanto no chinês simplificado é “门”. Em pinyin ambas designam-se por “Mèn”. Por azar este era um dos pouquíssimos ideogramas que eu conhecia porque Macau, que em pinyin se diz “Aomen”, se escrevia “澳門” e na versão simplificada ficou “澳门”. Porque chamamos “Macau” a uma terra que os chineses chamam “Aomèn”? Não consegui descobrir.
Os sítios onde se continua a usar o chinês tradicional são Taiwan e Hong-Kong, além provavelmente da diáspora chinesa, mostrando mais uma vez a importância do poder político na definição da ortografia, como se constatou no “Acordo” ortográfico de 1990 que aumentou o número das variantes ortográficas do língua portuguesa em vez de o diminuir como era seu objectivo declarado.
Este assunto é duma vastidão difícil de compatibilizar com um ou mais posts dum blogue pelo que vou ficar por aqui.
Tentando resumir o que aqui foi dito, julgo muito positivo o esforço feito pela China no projecto pinyin e na simplificação dos ideogramas. Isso facilitará a alfabetização de todos os chineses. A tarefa é gigantesca e demorará certamente muito tempo. Espero que tenham sucesso.
Quem quiser aprender a língua chinesa em Portugal poderá começar pelo Instituto Confúcio.
Adenda: encontrei um filme no Youtube que explica as diferenças entre o cantonês e o mandarim, que refiro no post seguinte deste blogue.
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