A Justiça nos EUA está a atravessar uma crise imensa, à semelhança dos outros dois poderes institucionais de Estados de Direito, o Executivo e o Legislativo.
O Poder e o Dinheiro sempre tiveram uma interacção forte mas a admiração prevalecente nos americanos pelos dois, conjugada com a importância dada ao voto (por exemplo na escolha de magistrados), que sempre foi influenciável pelo poder económico mas em que tecnologias recentes potenciaram essa influência ainda mais, conduziram à eleição dum americano condenado por um crime para o cargo de Presidente da República.
No tempos de Al Capone a justiça foi incapaz de provar que seria o mandante de numerosos assassínios de ocorridos dos EUA, conseguindo finalmente uma condenação apenas através da provas de evasão/fraude fiscal.
Nos tempos que correm, em que existe a crença popular de grandes e frequentes irregularidades do actual presidente na condução dos seus negócios, a inspeção fiscal já não foi capaz de detectar e/ou provar a existência de irregularidades fiscais. Provavelmente a classe dirigente de menos de 1% da população que controla 50% da riqueza produzida/apropriada nos/pelos EUA foi, através dos legisladores cujas campanhas eleitorais financia, capaz de introduzir um número suficiente de buracos legais que permitem uma evasão fiscal segura e indetectável.
E desde que o criminoso não seja apanhado, os sinais exteriores de riqueza dificilmente explicáveis são apreciados por boa parte dos eleitores, pelo engenho em ludibriar o fisco.
Além das fraquezas e problemas inevitáveis em sistemas de justiça, com alguns casos excepcionais de grande destaque explicáveis dada a grande dimensão populacional e económica dos EUA, a eleição em 2024 de Donald Trump revelou vários problemas profundos:
1) A falta de credibilidade do sistema judicial junto de quase metade dos eleitores americanos
Após a perda da eleição de 2020 por Trump este candidato perdeu também junto de cerca de 60 tribunais de diferentes estados a totalidade das acções em que tentara impugnar as eleições em diversos sítios. Mesmo após estas perdas os eleitores de Trump continuaram convencidos na sua maioria que a eleição lhe tinha sido roubada. Estas dúvidas sobre resultados de eleicões são comuns em Estados recentes mas completamente anómalas em democracias consolidadas, pondo em perigo a transição pacífica do poder, característica essencial duma democracia.
2) A Procuradoria foi incapaz de o responsabilizar pela insurreição de 6/Jan/2021 antes da eleição de 2024
Embora Trump tenha discursado em frente de câmaras de estações de TV incitando a multidão a manifestar-se contra a homologação da eleição no Capitólio e não só não tivesse tomado medidas para conter a invasão como não tomado qualquer acção para conter os inssurectos, tendo mesmo prometido posteriormente que amnistiaria os participantes na invasão do Capitólio, a Procuradoria foi incapaz de o acusar criminalmente em tempo útil. Numa nação tão pronta para a acção surpreende esta procrastinação. Cheguei mesmo a ler que era difícil acusá-lo por não ter participado fisicamente na invasão. Não me consta que Bolsonaro tenha participado fisicamente nos desacatos em Brasília de 8/Jan/2023 e foi condenado em tribunal em 11/Set/2025, menos de 3 anos depois, a vários anos de prisão.
3) Amnistias preventivas
Considerando as ameaças feitas por Trump na campanha eleitoral que não só amnistiaria os invasores do Capitólio condenados e presos mas que também moveria processos aos seus inimigos, o presidente Biden amnistiou preventivamente centenas ou mesmo milhares de pessoas, impedindo que fossem perseguidos pela Procuradoria por eventuais delitos que tivessem cometido durante alguns anos. A maioria dessas pessoas não estava indiciada por qualquer crime, sendo apenas uma forma de evitar perseguições futuras sem fundamento. Eu nunca ouvira falar em amnistias preventivas e esta anomalia, que o futuro mostraria como razoável, deveria ter sido um aviso para o poder judicial.
4) Incapacidade do poder judicial e do Supremo Tribunal de Justiça
Os membros do Supremo Tribunal de Justiça, perante a avalanche de ordens executivas, muito provavelmente violando a Constituição, acabaram por as autorizar temporariamente deixando para mais tarde (ASAP- As Soon As Possible), quando o tribunal tivesse tempo (o famoso tempo da Justiça) para analisar a questão.
Lembrei-me a propósito de um tribumal em Portugal ter emitido uma autorização temporária de demolição do cineteatro Monumental na Praça do Saldanha em Lisboa ilustrando a consequência com esta foto dum post do blogue "Lisboa de Antigamente":
Um Supremo Tribunal de Justiça, perante este assalto do poder Executivo à Constituição Americana deveria ter suspendido a maior parte das ordens executivas que lhe foram enviadas por outros tribunais, deixando para análise posterior (ASAP) a conformidade com a Constituição. Parece-me assim que talvez os juízes possam ser acusados de não ter defendido a Constituição pois permitiram a destruição de instituições públicas por ordens executivas possivelmente inconstitucionais.
5) Desrespeito pelo poder judicial
Decisões de tribunais inferiores foram desrespeitadas como no caso de Kilmar Abrego-Garcia e agora na comutação da pena de George Santos, um deputado republicano no Congresso, quinto congressista a ser expulso desde a existência bicentenária desta instituição.
Segundo a Wikipédia
«…
Em 25 de abril de 2025, Santos foi condenado a 87 meses de prisão federal por fraude e falsidade ideológica.
Em 25 de julho de 2025, Santos foi preso após se entregar à Justiça americana no último dia do prazo estipulado. Ele foi detido na Instituição Correcional Federal, em Fairton, no estado de Nova Jérsei.
Comutação da pena
Em 17 de outubro de 2025, a pena de prisão de George Santos foi comutada pelo presidente Donald Trump, resultando em sua libertação imediata da prisão federal.
Santos cumpria uma pena de 87 meses (mais de sete anos) na Instituição Correcional Federal em Fairton, Nova Jérsei, após se declarar culpado de acusações federais de fraude e roubo de identidade. Ele iniciou sua pena em julho de 2025. O presidente Trump anunciou a comutação nas redes sociais, afirmando que, embora Santos fosse um "pária", havia sido "horrivelmente maltratado" na prisão e que uma pena de sete anos era excessiva. A declaração de Trump também citou as convicções políticas de Santos como motivo para a comutação, escrevendo: "Pelo menos Santos teve a coragem, a convicção e a inteligência para SEMPRE VOTAR REPUBLICANO!". A comutação libertou Santos da prisão imediatamente.
…»
Trump tem dito que “ninguém está acima da lei” quando dá ordens à Procuradoria para perseguir cidadãos com quem antipatiza. Constata-se contudo que existem cidadãos acima da lei como este que “sempre votou republicano” ou os insurrectos que invadiram o Capitólio em 06Jan2021.
6) Interferência no trabalho da Procuradoria
Em princípio a Procuradoria devia ter autonomia para detectar indícios de crime produzindo acusações fundamentadas para serem julgadas em tribunal.
Actualmente a Procuradoria dá prioridade a investigações por exemplo contra quem investigou as suas actividades como James Comey ou o criticou como John Bolton.
Concluindo trata-se dum retrocesso à Idade Média da Europa em que o rei soberano tinha legitimidade para fazer leis, julgar e perseguir quem bem entendesse. Na Europa havia na altura fartura de reis e essa foi uma das razões porque tantos europeus emigraram para a América.
Uma boa parte da população americana não quer um rei no seu país e por isso fizeram manifestações em Junho em muitos Estados da Federação com o lema “No Kings” tendo repetido essas manifestações no passado domingo, dia 19/Out/2025 sempre pacíficas, com enorme participação popular.
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