Cada geração passa por dificuldades específicas das suas épocas, com o aproximar dos 50 anos do 25 de Abril lembrei-me de contar as condições de vida dos jovens que nos anos 60 frequentavam o ensino universitário como, por exemplo, eu.
Antes da guerra colonial houve um tempo, talvez na década de 50 e noutras alturas em que os rapazes iam "às sortes", em que depois de se apurar os "aptos para todo o serviço militar" se tirava à sorte quem iria ser incorporado e quem ficava dispensado.
Por exemplo o meu pai, nascido em 1910, ficara livre do serviço militar devido a uma forte miopia enquanto o meu sogro, nascido em 1915, contou-me que andara nuns exercícios militares ao pé da Guarda durante a guerra de 1939-45.
Existia portanto a noção de não ser razoável que o país incorporasse todos os jovens em tempo de paz.
Contudo, após o início da luta armada pela independência em Angola em1961, na Guiné-Bissau em 1963 e em Moçambique em 1964 houve uma incorporação maciça de toda a juventude, em que pessoas com visão menos boa ou outros problemas de saúde eram incorporadas para serviços administrativos, enquando a grande maioria era incorporada “para todo o serviço militar”.
Estive a consultar os meus arquivos e revi a minha “Cédula de Recenseamento”aqui ao lado, datada de 1969, ano em que completei 20 anos e tive que me recensear. Este documento devia acompanhar o cidadão “para lhe servir de ressalva até ao dia em que for presente à Junta de Recrutamento”.
Quem estivesse a estudar num curso universitário e em condições de o concluir até um certo limite de idade podia pedir adiamento da incorporação até finalizar o curso e depois, caso se doutorasse até concluir o doutoramento, caso em que teria, todos os anos que pagar a Taxa Militar no valor de 60 escudos de 1970, que vi na Pordata valerem agora 20,12€, uma taxa mesquinha que fazia os cidadãos perder tempo para “indemnizar o Estado dum “benefício” que ele outorgara ao jovem estudante”.
No meu caso paguei a Taxa Militar em 1970 e 1971 conforme recibos ao lado, concluí a licenciatura em 1971 e fui incorporado no exército em Outubro/1972.
Antes da incorporação no exército existia a possibilidade de se emigrar para evitar o serviço militar. Era uma decisão difícil pois passava-se à condição de “Refractário”. Pessoas nessa condição não poderiam renovar o Passaporte em Consulados Portugueses e caso regressassem ao país seriam imediatamente detidos e enviados para a prisão militar em Penamacor. A fuga para o estrangeiro após a incorporação correspondia a uma deserção, considerada mais grave. Permanecer no estrangeiro sem Passaporte colocava a pessoa na ilegalidade e numa situação frágil para arranjar emprego. De qualquer forma foi a opção de cerca de 1 milhão de portugueses que emigraram na década de 60, muitos deles não só descontentes com as condições de vida que a sociedade portuguesa então (não) lhes proporcionava como ainda com a perspectiva de participar na guerra colonial na condição de soldado.
Este artigo dum sítio do governo “Os Números na Primeira Fase da Guerra de África (1961-1965)” que tem alguns números da Guerra de África, refere que alguma emigração se fazia violando as obrigações militares. Na altura o acesso a informação era muito mais difícil do que agora e havia alguma desconfiança em relação a números oficiais, pela falta de transparência dos regimes autoritários como o que existia antes do 25 de Abril.
Após o recenseamento militar e até à passagem à disponibilidade, qualquer saída do país necessitava duma autorização das Forças Armadas. Já não me lembro do prazo de validade de cada uma mas era menor do que a validade do passaporte. Notei recentemente algumas semelhanças e diferenças sobre a necessidade das mulheres casadas precisarem duma autorização do marido para se deslocarem ao estrangeiro, no caso dos jovens tinham que pedir licença às Forças Armadas, enquanto as jovens solteiras não tinham essa necessidade.
Quando se terminava a licenciatura era extremamente difícil encontrar emprego em empresas privadas, pois estas não estavam dispostas a admitir trabalhadores que passada uma quantidade de tempo desconhecida, que no meu caso foram 18 meses, se ausentavam durante 36 a 48 meses para o serviço militar.
No final dos anos 60 começaram a chamar pessoas que já tinham feito o serviço militar mas sem mobilização para África, para avaliar a sua aptidão para o curso de capitão, em que após uma formação formariam uma Companhia (cerca de 120 homens) que seria mobilizada para uma comissão de 24 meses.
A partir dessa altura as empresas privadas começaram a admitir apenas pessoas com serviço militar cumprido, dando preferência a candidatos que tivessem sido mobilizados para África durante o serviço militar.
As diversas hipóteses de carreira militar para pessoas com o 7º ano do liceu (11 anos de escolaridade), futuros oficiais milicianos eram as seguintes:
- No Exército (aqui ao lado está o B.I. Militar com foto em que tentei expressar ausência de entusiasmo):
- 1º Período de 3 meses em Mafra para “Introdução à vida militar” como “Cadetes” em regime de pensão completa no quartel, compatível com a ausência de remuneração, eventual licença para ir jantar fora no concelho de Mafra e possíveis licenças nos fins-de-semana;
- 2º período de 3 meses para um início de “especialização” encaminhando o recruta para uma das 4 “Armas” do exército: Infantaria, Cavalaria, Artilharia e Transmissões, passando no fim de Cadete a “Aspirante” e sendo colocado num quartel do Continente ou ilhas.
- Dependendo da especialidade/função atribuída poderia ser ou não mobilizado para Àfrica como Alferes, comandando um pelotão de 30 soldados ou desempenhando funções mais técnico-administrativas.
- Nos finais dos anos 60 começaram a seleccionar, entre cadetes com mais de 23 anos, alguns possíveis milicianos para o curso de Capitão. Desconheço os tempos envolvidos para esses casos.
Normalmente não se era mobilizado antes de passarem 12 meses desde a incorporação e não se era mobilizado mais de 24 meses após a entrada. A comissão em África durava 24 meses. Assim, para quem era mobilizado para África o serviço militar no exército poderia demorar de 36 a 48 meses. Para quem não era mobilizado a duração estava fixada em 39 meses. Isto eram os prazos normais, por vezes ocorriam atrasos de alguns meses.
- Na Marinha existia menor incerteza quanto à duração do serviço que estaria fixado em trinta e tal meses. Após o 25/Abril enquanto muitos milicianos do exécito foram passados à disponibilidade muito mais cedo do que o esperado, na Marinha tiveram que cumprir o prazo até ao fim.
Na minha chegada à Guiné fui surpreendido por boa parte da população não falar português, mostrando lacunas graves na alegada organização de Estado Unitário de Portugal. Os escudos que circulavam na Guiné eram específicos dessa Província Ultramarina e não havia liberdade de circulação dos habitantes pelas outras partes do Estado Unitário. Mesmo as tabelas alfandegárias eram diferentes, em Bissau era mais barato adquirir uisque do que na Metrópole. Existe actualmente maior liberdade de circulação de pessoas, mercadorias e capitais entre os diversos países da União Europeia do que então entre as diversas partes do Estado alegadamente Unitário de Portugal.
Havia uma quantidade apreciável de tribos, os Fulas, os Manjacos, os Papéis, os Balantas e outros de que não me lembro, diferenças previsivelmente exploradas pelas autoridades coloniais, seguindo o método clássico “divir para reinar”.
O 25 de Abril veio pôr cobro à guerra colonial, reduzindo o serviço militar de muita gente, instaurou a democracia em Portugal e facilitou redução das desigualdades económicas então existentes, se bem que continuem excessivas.
Sobre um eventual restauro do Serviço Militar Obrigatório eu concordo que ter umas forças armadas para evitar o "horror ao vácuo", que tanto se observa nas leis da Física como nas leis das sociedades humanas, é indispensável.
Considero contudo que em tempo de paz não é razoável ter um SMO embora o país deva manter uma estrutura permanente bem remunerada em tempo de paz e adequada para uma transição rápida para SMO em tempo de guerra.