O caso da TAP fez-me regressar a um texto do Rui Tavares publicado no jornal Público em 27/Jan/2007 intitulado “Da vontade de não ser levado a sério”:, sobre a relação de "dialógica" que o cristianismo medieval tem com a lei, de que transcrevo a primeira parte
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No meu tempo de faculdade, a única maneira de ainda ter aulas com o professor José Mattoso era inscrevermo-nos numa cadeira opcional de História das Religiões na Idade Média. Eu fui um dos sortudos que assistiram a essas aulas - e uma em particular é o ponto de partida para esta crónica. Naquele dia o professor comentava um catecismo medieval irlandês e, de passagem, notou como muitas das suas interdições sobre alimentação e sexualidade eram praticamente impossíveis de cumprir, seja pelo seu grau de pormenor, seja pela profusão de dias sagrados (e respectivos interditos) que quase chegavam a ocupar um terço do ano. Tal não nos devia espantar, dizia o professor, pois o cristianismo medieval tem uma relação que se poderia chamar de "dialógica" com o ideal da lei. O ideal era para ser aclamado, consagrado, glorificado; não tanto para ser cumprido. Quanto mais próximo do ideal, melhor. Porém, todos nascemos em pecado e vivemos em pecado, tendo a doutrina margem suficiente para cobrir a lacuna entre esse ideal que está escrito e as práticas de nós todos pecadores aqui em baixo. Aliás, se pensássemos bem, essa relação "dialógica" com a lei sobrevivera muito mais no catolicismo e muito menos no protestantismo, sendo especialmente visível em países como a Irlanda (de que tínhamos ali um vestígio antigo naquele catecismo) e Portugal, onde a relação com a lei era fluida e cheia de folgas.
Espero ter sido fiel ao pensamento do professor Mattoso, e devo desde já deixar muito claro que não faço ideia se ele concordaria com o resto do que vou escrever. Mas o facto é que me tenho lembrado muitas vezes dessa sua lição sobre a natureza "dialógica" da nossa relação com a lei, e nunca tantas vezes como desde que a campanha do referendo sobre o aborto entrou a todo o vapor.
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escrito a propósito da lei do aborto mas que se aplica directamente
- por exemplo, à limitação de 120km/h das auto-estradas;
- às proibições de estacionar praticamente em todos os lugares estacionaveis deixando ao condutor o exercício de descobrir quais os lugares em que é tolerado que se estacione em transgressão daqueles em que é verdadeiramente proibido;
- ou mesmo à aplicação do Estatuto de Gestor público a companhias como a TAP.
Em Portugal é difícil distinguir o que é verdadeiramente proibido do que costuma ser tolerado.
Lembro-me também de outra explicação corrente no tempo do Salazar: era proibido praticamente tudo, deixando o perdão à arbitrariedade do príncipe.
Consequentemente em Portugal alguns transgressores são penalizados quando inopinadamente o princípe ou a sociedade (ajudada pelos media) decide que afinal uma determinada lei deve mesmo ser levada a sério.
Dado que existem relativamente poucas pessoas envolvidas, a área das indemmizações dos administradores das empresas é uma das áreas em que existem abusos que são amplamente tolerados, provavel motivo para Medina não ter valorizado, na nomeação para a Secretaria de Estado do Tesouro, a agora escandalosa indemnização recebida por Alexandra Reis de que devia ter conhecimento informal.
Neste caso a mudança inopinada da tolerância poderá ser devida quer às políticas de violenta austeridade na TAP em relação aos trabalhadores, quer à tradição de no segundo mandato dos Presidentes da República estes se dedicarem a promover a alternância democrática atacando o governo, no que são alegremente acolitados pela imprensa.
Tenho achado curiosa a diferença nas opiniões manifestadas sobre as últimas decisões do ministro Medina, na sequência das conclusões da IGF:
- os políticos da AR acham que fez muito bem em demitir a CEO e o chairman;
- os comentadores da RTP3 acham estranho que tenha feito estas demissões e receiam terem que vir a pagar indemnizações à CEO;
- na parte do "Choque de ideias" do programa na RTP3 “Tudo é Economia” de terça-feira, dia 7/Mar, o Ricardo Sá Mamede e o Ricardo Arroja tiveram um raro momento de convergência e atacaram muito os advogados que, perante uma situação tão claramente ilegal como diz a IGF, foram incapazes de avisar os demitidos que estavam a cometer uma ilegalidade.
Fico a pensar que não há Densificação que nos valha nas nossas leis e que é uma característica nacional a presença constante da Insegurança Jurídica quer na interpretação das leis pelos gabinetes de advogados quer posteriormente na latitude da interpretação de cada lei concreta por vários juízes, que chegam a valorizar a pluralidade de opiniões como um factor positivo.
Os juízes não são autómatos mas devem harmonizar entre eles eventuais interpretações divergentes de cada lei. Talvez um comportamento mais previsível dos juízes também contribuísse para tornar mais raros pareceres, que agora parecem abstrusos ao Presidente da República, de importantes gabinetes de advogados.
1 comentário:
A insegurança jurídica não existe, existe é a aplicação da lei interpretada pelos tribunais em que cada caso tem as suas especificidades. É precisamente por isto que existe o 3º poder, independente, e, consequentemente, juízes e tribunais.
Não me parece que mesmo em Babilónia a aplicação da lei fosse "matemática".
É um pouco forçado dizer como um advogado, pai de um amigo, a propósito da aplicação da lei depender do cada caso concreto. "os juízes são como as mulas, dão coices, mas nunca se sabe para que lado".
Já agora, a propósito dos recentes despedimentos "por conferência de imprensa", devemos estar precavidos porque estamos a assistir ao espectáculo mediático, com a atenção toda na árvore, ao passo que esquecemos a floresta.
Mesmo assim, pode-se prever muita litigância dado que um despedimento por justa causa implica um processo disciplinar "à prova de bala" e, usualmente, os tribunais do trabalho decidem pelo trabalhador em detrimento dos patrões.
Avizinham-se pois indemnizações.
Note-se que a indignação ainda não foi constituída como causa de condenação.
Voltando à floresta, o circo mediático está montado para apresentar a TAP como uma empresa ingovernável e, simultaneamente, depreciada.
Numa eventual (podemos não lá chegar, como veremos) licitação para compra da TAP ver-se-ão propostas extremamente baixas ou, mesmo, nenhuma proposta, muito ao modo como se tem procurado alienar a EFACEC.
Este é o desfecho que o governo pretende. Porquê?
Simplesmente porque o governo e o PM (principalmente) puseram a honra em jogo ao retomarem o controlo da empresa, além de ter sido usada como moeda de troca para criar a geringonça e conseguir ser governo.
O azar, quando tudo parecia correr bem, foi a covid.
Não podendo financiar diretamente a TAP, negociou-se uma reestruturação com a Comissão Europeia mas, desgraça, esta impôs a privatização da empresa.
Por isso, tudo está a ser feito para um dia aparecer alguém em Bruxelas, tal como Egas Moniz, dizendo que bem queremos, mas não conseguimos privatizar.
É por isto que, repito, não devemos perder-nos em pormenores a propósito de uma árvore, esquecendo a floresta.
Nota - o artigo de hoje do diretor do Expresso é bem mais pessimista.
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