Até agora eu tinha considerado a Guerra de Invasão da Ucrânia pela Rússia como uma violação inequívoca da Carta da Nações Unidas e como tal injustificável.
Contudo tinha curiosidade em conhecer que conjunto de possíveis razões teriam levado Putin a cometer um erro tão grande, pois nenhuma das alegadas “justificações” me parecia verosímil:
1) Expansão da NATO
Recordadndo o que escrevi em post anterior: “Essa “expansão” foi suscitada pelas invasões que a URSS fez e/ou ameaçou aos seus vizinhos tais como a segunda repartição da Polónia na sequência do pacto de não agressão celebrado em 1939 entre Estaline e Hitler, a absorção dos Estados Bálticos no fim da guerra 1939-45, a invasão da Hungria em 1956, a invasão da Checoslováquia em 1969, as ditaduras comunistas na Bulgária e na Roménia.” e concluindo: “não foi a NATO que se moveu para Leste, foram os países de Leste que se quiseram juntar ao Ocidente.”
A quase totalidade das intervenções da NATO tiveram como base Resoluções da ONU e nenhuma teve a dimensão de morte e destruição da agressão russa à Ucrânia.
2) Desnazificação da Ucrânia
O facto de existirem elementos de extrema-direita no Batalhão de Azov, usando símbolos das milícias SS do tempo do Hitler não equivale ao estado ucraniano ter uma natureza nazi. Caracterização particularmente ridícula quando o primeiro-ministro ucraniano tem ascendência judaica.
3) A Ucrânia e o povo ucraniano não existem nem nunca existiram
Este discurso de Putin horas antes do início da invasão pode-se considerar como uma realidade alternativa criada pela vontade imensa de Putin de aniquilar a Ucrânia e os ucranianos como país soberano. Ironicamente, a URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) tão apreciada por Putin, reinvidicou na criação da Organização das Nações Unidas em 1945 ter 3 votos na Assembleia Geral, dada a grande autonomia de que gozavam dentro da URSS as repúblicas da Ucrânia e da Bielorússia que constam assim da lista de estados fundadores da ONU, como se pode constatar aqui.
Entretanto enviaram-me há uns dias um “pequeno” filme com a duração de 40 minutos intitulado “Russia Catastrophic Oil and Gas Problem” com o subtítulo “What Russia is Fighting For”.
Tentando resumir esse filme ele mostra as zonas onde existem as maiores jazidas de petróleo e de gás natural na imensidão territorial da Federação Russa, cuja exportação representa 40 a 50% do orçamento do estado russo e 30% do PIB. Destacam-se as jazidas no Mar Cáspio e suas margens, as jazidas no Volga e Montes Urais, e na Sibéria Ocidental conforme se vê nesta imagem da apresentação:
Metade das exportações russas de petróleo e ¾ das de gás natural fluem através de óleodutos e gasodutos para a Europa, representando 33% do orçamento do estado russo:
Este recurso sistemático a oleodutos e gasodutos deve-se à proximidade da Europa, grande importadora de combustíveis fósseis, e à fraca disponibilidade na Rússia de “portos de águas quentes”, significando aqui portos que não fiquem bloqueados por gelo em parte do ano, o que torna difícil a exportação para outros continentes.
Esta infraestrutura montada pela URSS nos anos 70, proporcionando grandes receitas na sequência dos choques petrolíferos de 1973 e 1979, como se vê no gráfico copiado daqui, terá criado uma vulnerabilidade à volatilidade do preço do petróleo. O colapso do preço do petróleo em 1986 poderá ter contribuído para o colapso da URSS.
Nas margens do Mar Cáspio, além da Rússia também as repúblicas do Azerbeijão, Casaquistão, Uzbequistão e Turquemenistão, que ficaram autónomas, tinham algumas jazidas de petróleo e de gás natural. Porém, todas elas precisavam de usar condutas controladas pela Rússia para exportar os combustíveis fósseis, mantendo assim a Rússia uma espécie de monopólio sobre estas produções.
O único país que se conseguiu libertar da tutela russa para exportar a sua produção fóssil foi o Azerbeijão, construindo duas condutas através da Geórgia, um deles terminando no porto turco de Ceyhan no Mediterrâneo e o outro (The Southern Gas Corridor) passando pela Turquia, Grécia, Albânia e mar Adriático até à Itália. Estas condutas devem ter influenciado a tentativa da Geórgia aderir à NATO e a posterior invasão da Rússia para “libertar” a Ossétia do Sul e a Abecásia.
O Turquemenistão gostaria de estender uma conduta sumarina sobre o fundo do mar Cáspio, que lhe permitiria usar as condutas que saem do Azerbeijão e assim aceder a consumidores europeus sem pagar as tarifas das condutas russas mas a Rússia tem a posição que a colocação de condutas submarinas no Cáspio precisam de aprovação de todos os países bordejando esse mar e eles opor-se-ão. O Turquemenistão tem vendido algum gás à China mas a preços menos interessantes.
Entretanto o preço do petróleo, que tem comportamento de autêntica montanha russa, valorizou bastante, com altos e baixos, desde que Putin chegou à presidência em Maio/2000, tendo usado boa parte do aumento das receitas nestes 22 anos para fortalecer as forças armadas russas e para intervenções militares na Tchetchénia, na Geórgia e sobretudo na Ucrânia.
Na figura seguinte constata-se que o escoamento dos combustíveis fósseis da antiga URSS, embora monopolizados pela federação russa, com a excepção do Azerbeijão, na maior parte do seu trajecto, passaram a necessitar de atravessar ou a Bielorrússia ou a Ucrânia para serem entregues aos clientes europeus.
Dada a grande dependência de Moscovo do poder político Bielorusso presume-se que a travessia da Bielorússia não tenha causado problemas, o mesmo não se passando com a Ucrânia que levou designadamente a uma interrupção do fornecimento de gás natural a países Europeus de 1/Jan a 4/Jan/2006, causando disrupções também na produção de electricidade, com alegações que a Ucrânia estaria a desviar algum do gás natural em trânsito para consumo interno. A lista de conflitos contratuais no trânsito de gás russo através da Ucrânia tem sido grande, como se constata neste artigo da Wikipédia “Russia-Ukraine gas disputes”.
Para evitar estes conflitos frequentes a Rússia construiu como se vê na figura:
- Yamal, um prolongamento de gasoduto russo chegando à Bielorússia através da Polónia, até à Alemanha nos finais dos anos 90;
- O Nord Stream 1, gasoduto através do mar Báltico directamente da Rússia até à Alemanha com duas condutas paralelas, a 1ª em serviço em Nov/2011 a 2ª em Out/2012;
- O Nord Stream2, gasoduto também com duas condutas correndo na maior parte paralelo ao Nord Stream 1, que não foi certificado devido à invasão da Ucrânia em 24/Fev/2022;
- Dois gasodutos Rússia-Turquia.
Entretanto foram descobertas na Ucrânia 3 zonas com enormes jazidas de gás natural, maiores ainda do que as da Noruega, no Sul, no Nordeste e na parte mais ocidental. O escoamento deste gás seria facilitado pela existência de gasoduto ligando a Ucrânia à Europa, criando assim um concorrente directo com a Rússia. Em Set/2011 foi assinado contrato com ExxonMobil para explorar gás de xisto, em Jan/2013 assinaram contrato com Shell sobre o Yuziuska Field no Donbass e em Nov/2013 outro contrato com Chevron para a zona oeste.
Logo a seguir em 2014, houve uma revolução, a deposição do presidente pró-russo e a eleição doutro pró-ocidente. Aprovada uma lei banindo o russo como língua oficial a que se seguiu a anexação da Crimeia pela Rússia e a presença de tropas russas na zonas separatistas do Leste.
A potencial quebra do monopólio russo de venda de combustíveis fósseis à Europa poderá, segundo os realizadores deste filme que tenho vindo a descrever, ter sido considerada como uma ameaça existencial da Ucrânia à Rússia.
Em finais de 2014, as 3 companhias petrolíferas acima referidas, sentindo a falta de segurança devida à intervenção russa na Ucrânia, denunciaram os contratos que tinham assinado.
Em 24/Fev/2022 a Rússia iniciou uma invasão militar em grande escala na Ucrânia, provavelmente pensando numa intervenção rápida em Kiev com substituição dos governates ucranianos por outros pró-russos. Como esse plano A falhou, passaram ao plano B, de ocupação completa do Donbass e de todo o Sul pelo menos até Khersov, ocupando a maioria das zonas potencialmente ricas em combustíveis fósseis, tornando o Mar de Azov um lago russo e isolando a Ucrânia do acesso ao mar Negro se conseguirem chegar à Transnístria, confirme se vê na figura seguinte
Resumindo, o império russo tem crescido há centenas de anos, invadindo os vizinhos mais fracos, sentindo-se permanentemente ameaçado pelos vizinhos mais fortes que ainda não conseguiu invadir. Quando um vizinho se torna incómodo, após as pressões diplomáticas e alguns investimentos técnicos (gasodutos) que permitam reduzir a interferência desse vizinho incómodo, passa à intervenção militar com anexação de território (Crimeia) que serve posteriormente também de apoio para uma intervenção militar esmagadora como não se via na Europa desde o final da 2ª guerra mundial.
Continuo a achar esta guerra como uma violação inequívoca da Carta da Nações Unidas e como tal injustificável mas julgo ter percebido melhor o que levou Putin a cometer este erro terrível, reforçando a minha opinião que já nos devíamos ter libertado há muito mais tempo dos combustíveis fósseis que desde que começaram a ser explorados têm estado na origem de muito bem-estar mas também da maior parte das guerras da última centena de anos.
Mais duas notas de rodapé:
A Rússia dizia que a Ucrânia era praticamente um membro da NATO, tendo sido dotada dos armamentos típicos dessa aliança militar. Afinal, a artilharia ucraniana parece ter quase esgotado as munições para os canhões do pacto de Varsóvia cedidas pelos países desse pacto que entretanto acederam ao armamento NATO. De uma forma geral, o mesmo se tem passado com outro armamento, com a excepção de algum armamento anti-carro americano e de drones turcos.
Muita gente tem dito que as sanções têm afectado pouco a Rússia, incluindo os próprios russos. Porém agora têm exigido o levantamento das sanções para permitir o escoamento por mar dos cereais ucranianos.
1 comentário:
Por Quem é que Estão a Morrer Mercenários Portugueses na Ucrânia?
https://toranja-mecanica.blogspot.com/2022/06/por-quem-e-que-estao-morrer-mercenarios.html
Enviar um comentário