Usando a mesma técnica de embutir pedrinhas semi-preciosas em mármore branco como referido há uns tempos neste blogue, desta vez o artesão fez uma caixinha com cerca de 10cm de comprimento por 7,5 cm de largura.
Não é tão espectacular como o prato mas uma pessoa concentra-se mais facilmente no detalhe dos embutidos
Recordo a legenda do post anterior em relação às pedras usadas
- Malaquite, de cor verde
- Lápis-lazuli, azul escuro
- Turquesa, de cor azul-turquesa
- Cornalina, de cor laranja mais ou menos avermelhada
- Madrepérola
e o verde-azeitona nos caules das flores talvez seja jade
e uma vista em perspectiva para finalizar:
2011-03-30
2011-03-28
Moda em Shiraz e Yazd
Depois de em Maio e Junho/2010 ter feito uns posts sobre a moda que tinha visto em lojas de Teerão e de Shiraz, que me levaram a pensar que as mulheres do Irão se limitavam ao tchador e a conjuntos de calças mais uns casacos ligeiramente abaixo dos joelhos, como os que se vêem na figura ao lado, que me pareceu na altura ser a moda feminina disponível, fomos visitar o bazar da cidade.
Afinal as mulheres do Irão também gostam de tecidos vistosos, certamente reservados para situações festivas, talvez mesmo um pouco vistosos demais para o gosto mais comum no Ocidente, mas parece que esses tecidos se encontram nos locais com longa tradição de comércio, vulgo bazar, e não nas lojas mais modernas com montras para a rua.
Nesta loja do bazar de Shiraz houve mesmo uma iraniana que fez questão de ficar na fotografia quando notou o meu interesse por estes tecidos vistosos. O vendedor parece bem disposto com a situação, há uma cliente que olha para a cena.
Nesta outra loja do mesmo bazar existem mesmo vestidos sem ombros mas é possível que sejam usados sobre blusas de manga comprida.
Fiquei a pensar se o tchador é um contraponto a tanta exuberância ou se esta é uma reacção à monotonia do tchador preto e das cores “de burro quando foge” da outra roupa feminina que se vê na rua.
Viajando para o norte chegámos à cidade de Yazd, que já referi noutros posts, em que me deparei primeiro com uma montra do que seria aqui uma loja para noivas
seguida destas montras estranhas onde os manequins femininos têm as cabeças cortadas a meio e mesmo assim cobertas com um véu ou um chapéu
Embora a paridade de género esteja aqui restabelecida ao nível quantitativo, parece-me simbolicamente terrível optar por esta via de cortar a meio a cabeça do manequim feminino
enquanto os homens continuam com direito a uma imagem íntegra.
E uma pessoa fica a pensar que as mulheres devem levar uma vida de clausura, como por exemplo em Lisboa na primeira metade dos anos 60 do século passado, onde me lembro da raridade das mulheres à noite nas pastelarias então numerosas na Praça de Londres.
Porém, neste “fast-food”, às 10 da noite, ao lado destas montras, havia empregadas a atender ao balcão, situação que julgo que teria sido considerada imprópria em Portugal na altura que referi.
Eu diria para concluir que, embora seja provável que actualmente os países em que o Islão predomina ganhem o campeonato da misoginia, eles estão longe de ter o exclusivo, e existem neles práticas que agora nos chocam mas que também eram dominantes no Ocidente há não muitas décadas.
Bom, não incluindo, por exemplo, estas questões do apedrejamento de Sakineh Ashtiani, que depois da suspensão da pena saiu dos jornais, da violação em grupo duma jornalista da CNN na via pública no Cairo e da cena inquietante da detenção de Iman Al-Obeidi num hotel em Tripoli, na Líbia
2011-03-22
Que possas ser a mãe duma centena de filhos
Na minha segunda viagem à Índia, em 1993, aconselharam-me este livro “May you be the mother of a hundred sons”, escrito por Elisabeth Bumiller, uma jornalista americana, repórter do Washington Post, que chegou à Índia em 1985, viveu lá até 1988 e publicou este livro em 1990.
O tempo voa e já passaram entretanto 21 anos desde que o livro foi publicado e cada ano que passa está um ano mais desfasado da realidade em que foi escrito, mas os costumes enraizados nas sociedades não desaparecem dum dia para o outro e muita coisa ainda será actual.
Nestes olhares de estrangeiros sobre um país existe sempre o risco da incompreensão duma sociedade estranha e de analisar uma sociedade usando os preconceitos da sua. A autora é realmente americana mas acho que fez um bom trabalho, trazendo o benefício da análise sem os preconceitos da sociedade analisada.
Quando o li lembro-me que gostei muito do livro, na descrição duma sociedade com costumes tão diferentes da portuguesa, mas ao fim de tantos anos retive quase apenas que existia um problema terrível com o dote que as raparigas tinham que levar para o casamento, dote esse que levando à ruína os pais conduzia por vezes ao infanticídio. Lembro-me de ser referido uma bebida com ervas que punha as meninas “a dormir”. Nas famílias mais abastadas o problema do dote também existia, mas era resolvido através de abortos selectivos em função do sexo do feto.
Face a este problema, o dos casamentos arranjados pareceu-me menos importante.
Lembro-me também duma referência a uma esposa do marajá de Jaipur e à sua vida faustosa que me levou a comprar o livro “A princess remembers” de que falei aqui e aqui, onde refiro que, embora o marajá fosse hindu e não muçulmano, resguardava a esposa dos olhares dos seus súbditos indianos, à semelhança do que acontecia com as esposas dos homens (muçulmanos) importantes do Afganistão.
Lembro-me ainda da importância da bosta de vaca na vida das pessoas pobres que a usavam como combustível e de ver imensas casas pequenas de camponeses, na estrada de Agra para Jaipur, cobertas de bosta de vaca a secar.
Este tema recordou-me o livro de David S. Landes, “A riqueza e a pobreza das nações” quando ele diz que o uso da bosta de vaca como combustível para cozinhar os alimentos em casas muitas vezes sem chaminé causa imensos problemas respiratórios nas famílias camponesas pobres da Índia que, vivendo tão perto da Natureza, têm afinal que enfrentar uma poluição atmosférica bem pior do que a existente em muitas cidades. Também não me consigo esquecer dele dizer que muita gente do campo gastava à volta de 4 horas por dia para recolher uns gravetos de lenha para o cozinhado diário. Uma pessoa nem se apercebe da facilidade de rodar o botão do fogão a gás e ter ali imediatamente disponível o combustível necessário para cozinhar.
Nas sociedades ocidentais existia este hábito do dote que nalgumas circunstâncias parecia fazer algum sentido económico. Era o caso das classes abastadas em que como a mulher se tinha que abster de qualquer tarefa remunerada, acabava por constituir um encargo para o marido pelo que o dote compensava essa expectável inactividade futura.
No caso das famílias camponesas pobres da Índia a mulher trabalhava duramente no campo, ganhando não só o seu sustento mas contribuindo também para o sustento da família. Neste contexto em que a “empresa familiar” recebia um “meio de produção” e não uma “despesa” qual o sentido do “meio de produção” ir acompanhado de um dote? A única explicação que consigo encontrar é a cópia mecânica e desajustada de costumes com eventualmente algum sentido económico nas classes abastadas, criando uma situação completamente absurda nas classes mais pobres.
O déficit de mulheres na Índia, que referi numa tabela (em que os valores indianos são de 2009, mostrando a permanência do problema) na parte final dum post que publiquei há pouco tempo, tem sido referido por gente muito famosa, designadamente por Amartya Sen (nobel de economia que recebeu neste mês de Março um doutoramento honoris causa na Universidade de Coimbra) em “More-than-100-million-women-are-missing”.
Tive dificuldade em escolher uma imagem para ilustrar este déficit de mulheres na Índia.
Acabei por escolher esta, que mostra um conjunto de homens a lavar a roupa em Mumbai, junto ao oceano Índico no bairro de Bandra.
Não é que eu sinta a falta das lavadeiras que havia em Portugal, mas é curioso constatar como se estabelece que uma profissão é mais adequada para um dos sexos do que para o outro e depois essa convenção perdura por muito tempo, embora sociedades diferentes usem convenções diferentes. E é evidente que tirei a foto porque a convenção indiana era diferente da portuguesa.
O tempo voa e já passaram entretanto 21 anos desde que o livro foi publicado e cada ano que passa está um ano mais desfasado da realidade em que foi escrito, mas os costumes enraizados nas sociedades não desaparecem dum dia para o outro e muita coisa ainda será actual.
Nestes olhares de estrangeiros sobre um país existe sempre o risco da incompreensão duma sociedade estranha e de analisar uma sociedade usando os preconceitos da sua. A autora é realmente americana mas acho que fez um bom trabalho, trazendo o benefício da análise sem os preconceitos da sociedade analisada.
Quando o li lembro-me que gostei muito do livro, na descrição duma sociedade com costumes tão diferentes da portuguesa, mas ao fim de tantos anos retive quase apenas que existia um problema terrível com o dote que as raparigas tinham que levar para o casamento, dote esse que levando à ruína os pais conduzia por vezes ao infanticídio. Lembro-me de ser referido uma bebida com ervas que punha as meninas “a dormir”. Nas famílias mais abastadas o problema do dote também existia, mas era resolvido através de abortos selectivos em função do sexo do feto.
Face a este problema, o dos casamentos arranjados pareceu-me menos importante.
Lembro-me também duma referência a uma esposa do marajá de Jaipur e à sua vida faustosa que me levou a comprar o livro “A princess remembers” de que falei aqui e aqui, onde refiro que, embora o marajá fosse hindu e não muçulmano, resguardava a esposa dos olhares dos seus súbditos indianos, à semelhança do que acontecia com as esposas dos homens (muçulmanos) importantes do Afganistão.
Lembro-me ainda da importância da bosta de vaca na vida das pessoas pobres que a usavam como combustível e de ver imensas casas pequenas de camponeses, na estrada de Agra para Jaipur, cobertas de bosta de vaca a secar.
Este tema recordou-me o livro de David S. Landes, “A riqueza e a pobreza das nações” quando ele diz que o uso da bosta de vaca como combustível para cozinhar os alimentos em casas muitas vezes sem chaminé causa imensos problemas respiratórios nas famílias camponesas pobres da Índia que, vivendo tão perto da Natureza, têm afinal que enfrentar uma poluição atmosférica bem pior do que a existente em muitas cidades. Também não me consigo esquecer dele dizer que muita gente do campo gastava à volta de 4 horas por dia para recolher uns gravetos de lenha para o cozinhado diário. Uma pessoa nem se apercebe da facilidade de rodar o botão do fogão a gás e ter ali imediatamente disponível o combustível necessário para cozinhar.
Nas sociedades ocidentais existia este hábito do dote que nalgumas circunstâncias parecia fazer algum sentido económico. Era o caso das classes abastadas em que como a mulher se tinha que abster de qualquer tarefa remunerada, acabava por constituir um encargo para o marido pelo que o dote compensava essa expectável inactividade futura.
No caso das famílias camponesas pobres da Índia a mulher trabalhava duramente no campo, ganhando não só o seu sustento mas contribuindo também para o sustento da família. Neste contexto em que a “empresa familiar” recebia um “meio de produção” e não uma “despesa” qual o sentido do “meio de produção” ir acompanhado de um dote? A única explicação que consigo encontrar é a cópia mecânica e desajustada de costumes com eventualmente algum sentido económico nas classes abastadas, criando uma situação completamente absurda nas classes mais pobres.
O déficit de mulheres na Índia, que referi numa tabela (em que os valores indianos são de 2009, mostrando a permanência do problema) na parte final dum post que publiquei há pouco tempo, tem sido referido por gente muito famosa, designadamente por Amartya Sen (nobel de economia que recebeu neste mês de Março um doutoramento honoris causa na Universidade de Coimbra) em “More-than-100-million-women-are-missing”.
Tive dificuldade em escolher uma imagem para ilustrar este déficit de mulheres na Índia.
Acabei por escolher esta, que mostra um conjunto de homens a lavar a roupa em Mumbai, junto ao oceano Índico no bairro de Bandra.
Não é que eu sinta a falta das lavadeiras que havia em Portugal, mas é curioso constatar como se estabelece que uma profissão é mais adequada para um dos sexos do que para o outro e depois essa convenção perdura por muito tempo, embora sociedades diferentes usem convenções diferentes. E é evidente que tirei a foto porque a convenção indiana era diferente da portuguesa.
2011-03-17
O Fogo
Comemorando o terceiro aniversário deste blogue e continuando a tradição de mostrar um dos 4 elementos fundamentais, como já passei pela água e pela terra chegou agora a vez do fogo.
Trata-se de um fogo especial, protegido por um vidro, que fotografei em 2010, alegadamente mantido de forma ininterrupta pelos seguidores de Zoroastro desde cerca de 470 DC, portanto há mais de 1500 anos, embora nem sempre neste local.
Diz que vem gente de todo o mundo para ver esta Ateshkadeh (chama sagrada eterna). O deus único Ahura Mazda, sem representação icónica, disse que quando lhe rezassem se voltassem para a luz, o que está na origem da existência de fogo, gerador de luz, nos templos dos seguidores de Zoroastro.
Lembro-me ainda de no liceu me terem ensinado que Zoroastro dizia que existia uma luta permanente entre os princípios do Bem e do Mal e que todos os seres humanos eram chamados a participar nessa luta para apressar a vitória do Bem sobre o Mal. Acho que na altura me disseram que esta vitória estava garantida, a nossa participação era "apenas" para apressar essa vitória. Existem razões para acreditar que Zoroastro nunca visitou Portugal.
Trata-se de um fogo especial, protegido por um vidro, que fotografei em 2010, alegadamente mantido de forma ininterrupta pelos seguidores de Zoroastro desde cerca de 470 DC, portanto há mais de 1500 anos, embora nem sempre neste local.
Diz que vem gente de todo o mundo para ver esta Ateshkadeh (chama sagrada eterna). O deus único Ahura Mazda, sem representação icónica, disse que quando lhe rezassem se voltassem para a luz, o que está na origem da existência de fogo, gerador de luz, nos templos dos seguidores de Zoroastro.
Lembro-me ainda de no liceu me terem ensinado que Zoroastro dizia que existia uma luta permanente entre os princípios do Bem e do Mal e que todos os seres humanos eram chamados a participar nessa luta para apressar a vitória do Bem sobre o Mal. Acho que na altura me disseram que esta vitória estava garantida, a nossa participação era "apenas" para apressar essa vitória. Existem razões para acreditar que Zoroastro nunca visitou Portugal.
2011-03-16
A Central Nuclear em Portugal
Quando Patrick Monteiro de Barros se propôs fazer uma central nuclear em Portugal, alegando que não precisava de qualquer apoio dos cofres públicos, sugeri-lhe no seminário da FIL que fosse construir a sua central para Espanha, visto ser um tão bom negócio privado. Indirectamente beneficiaria o nosso país pois dada a forte interligação eléctrica entre os dois países a boa performance da sua central do outro lado da fronteira certamente se reflectiria em melhores preços no MIBEL (Mercado Ibérico de Electricidade), aproveitando também a infraestrutura legal e regulamentar já existente em Espanha.
Agora que o crescimento do consumo na Ibéria continua algo anémico e visto que o Engº Pedro Sampaio Nunes insiste, com dúbio sentido de oportunidade, nas enormes vantagens e grande segurança das centrais nucleares mesmo em caso de terramoto, sugiro-lhe que redireccione os ímpetos de investimento do Sr. Patrick Monteiro de Barros para o Japão, país que ficou agora com falta de energia nuclear e onde as suas propostas serão certamente acolhidas com grande entusiasmo.
Nós por cá, que já gastámos tanto dinheiro em obras públicas, certamente teremos imenso a ganhar em evitar estas obras alegadamente privadas.
Imagens da BBC World News mostrando técnicos japoneses medindo eventual contaminação radioactiva, na sequência dos incidentes na central nuclear de Fukushima.
2011-03-11
Lírios dourados com oito centímetros
A propósito do dia internacional da mulher lembrei-me que há bastante tempo referi aqui um livro de que gostei imenso, “Cisnes Selvagens”, da chinesa Jung Chang, em que é passada em revista a história da China no século XX, através da vida quotidiana da avó, da mãe e da própria autora.
Marcou-me esta descrição, feita no início do livro, dos pés enfaixados das mulheres
«
A minha avó era uma beldade. Tinha um rosto de forma oval, com faces rosadas e pele sedosa. Usava os cabelos, negros, compridos e muito brilhantes, entretecidos numa grossa trança que lhe caía até à cintura. Sabia ser discreta quando a ocasião o exigia, o que significava quase sempre, mas sob aquele exterior recatado fervilhava um vulcão de energia reprimida. Era de` pequena estatura, um pouco menos de um metro e sessenta, e tinha uma figura muito esbelta, de ombros descaídos, o que era considerado o ideal.
O seu grande valor residia, porém, nos pés enfaixados, chamados em chinês «lírios dourados com oito centímetros»(san- tsun - gin- lian). Significava isto que caminhava «como um tenro rebento de salgueiro numa brisa primaveril», no dizer tradicional dos connoisseurs chineses de mulheres. A visão de uma mulher a caminhar vacilantemente sobre uns pés enfaixados tinha supostamente um efeito erótico nos homens, em parte, sem dúvida, porque a vulnerabilidade dela despertava em quem a via um impulso protector.
Tinha a minha avó dois anos quando lhe enfaixaram os pés. A mãe, que também tinha pés enfaixados, começou por enrolar-lhe à volta dos pés uma tira de pano com cerca de seis metros de comprimento, dobrando todos os dedos, excepto o grande, para dentro e para debaixo da planta. Depois pôs-lhes uma grande pedra em cima, para esmagar o arco. A minha avó gritou de dor e suplicou-lhe que parasse, e a mãe teve de meter-lhe um pano na boca, para amordaçá-la. A infeliz desmaiou diversas vezes, devido à dor.
O processo demorava anos. Mesmo depois de os ossos terem sido partidos, os pés tinham de continuar enfaixados, dia e noite , em tiras de pano, pois no momento em que fossem libertados, tentariam recuperar. Durante anos, a minha avó viveu cheia de dores terríveis e constantes. Quando suplicava à mãe que lhe tirasse as faixas, ela chorava e dizia-lhe que isso arruinaria toda a sua vida futura, e que fazia aquilo pela felicidade dela.
Naqueles tempos, quando uma mulher casava, a primeira coisa que a família do noivo fazia era examinar-lhe os pés. Uns pés grandes, ou seja, uns pés normais, traziam vergonha para a casa do marido. A sogra levantava a orla da comprida saia da noiva e, se os pés tivessem mais de oito centímetros, deixava-a cair, num claro gesto de desprezo, e afastava-se, deixando a pobre rapariga sujeita aos olhares críticos dos convidados, que lhe miravam os pés e murmuravam insultuosamente o seu desdém. Por vezes, uma mãe apiedava-se da filha e tirava-lhe as faixas. Mas quando a criança crescia e tinha de enfrentar o desprezo da família do marido e a reprovação da sociedade, acusava a mãe de ter sido demasiado fraca.
O costume de enfaixar os pés foi introduzido na China há cerca de mil anos, segundo se diz por uma concubina do imperador. Além de a visão das mulheres a coxear sobre uns pés minúsculos ser considerada erótica, os homens excitavam-se a acariciar os pés enfaixados, que permaneciam sempre escondidos nuns sapatinhos de seda bordada. As mulheres não podiam tirar as faixas mesmo depois de adultas, pois os pés começariam a crescer novamente. Só à noite, na cama, lhes era possível aliviar temporariamente o tormento, afrouxando um pouco as tiras de pano. Calçavam, então, uns sapatos de sola macia. Os homens raramente viam nus uns pés enfaixados, que estavam geralmente cobertos de carne apodrecida e exalavam um cheiro horroroso quando se retiravam as faixas. Lembro-me de, em criança, ver a minha avó constantemente cheia de dores. Sempre que regressávamos das compras, a primeira coisa que ela fazia era meter os pés numa bacia de água quente, suspirando de alivio. Depois punha-se a cortar pedaços de pele morta. A dor era provocada não só pelos ossos partidos, mas também pelas unhas, que cresciam para dentro das pontas dos dedos.
Na realidade, os pés da minha avó tinham sido enfaixados precisamente na altura em que a prática estava prestes a desaparecer para sempre. Quando a irmã dela nasceu, em 1917, o costume tinha sido praticamente abandonado, de modo que conseguiu escapar ao tormento.
Na época em que a minha avó cresceu, no entanto, a atitude prevalecente numa cidade pequena como Yixian era ainda a de que os pés enfaixados eram essenciais para um bom casamento - embora fossem apenas um começo.
»
É assustador como um disparate cruel como este é capaz de perdurar por 1000 anos!
Obtive este texto do livro "Cisnes Selvagens" aqui
Ao procurar no google "lirios dourados com oito centimetros" fui dar a este post com um resumo do livro e com esta fotografia de sapatinhos para pés enfaixados
Lembrei-me também do álbum do Tintin, “Le Lotus Bleu”, de onde tirei estes quadrinhos:
Sendo a primeira edição do álbum Le Lotus Bleu de 1936, constata-se que a informação sobre o abandono do enfaixamento dos pés das mulheres chinesas ainda não chegara à Europa, o que não me parece de admirar, dado que essa extinção, segundo Jung Chang, ocorrera há cerca de 20 anos.
Neste artigo da Wikipedia fala sobre os pés ligados, com fotografias e radiografias e descrições ainda mais horríveis do processo e das suas consequências. Do que nele li ficaram-me fortes dúvidas da prática estar completamente erradicada em 1936, se tal fosse o caso não haveria necessidade de os comunistas proibirem a prática quando chegaram ao poder em 1949. Há também uma referência da comunidade Hui, maioritariamente islâmica, ter adoptado a prática
Pensei que o costume se tivesse limitado a mulheres reservadas para dar prazer aos seus maridos e que as que tivessem que trabalhar no campo não tivessem sido atingidas mas mesmo estas foram afectadas por este hábito insano, embora um pouco menos do que as primeiras.
O que li reforçou a minha convicção que o tratamento cruel das mulheres em vários casos se propaga pela cópia pela sociedade de práticas inicialmente restritas às classes elevadas e que essas “modas” cruzam com facilidade as fronteiras religiosas. Foi o que aconteceu com a adopção da burka no Afganistão, erradamente confundida com uma prática islâmica.
Já quanto aos infanticídios referidos nos quadrinhos, não me parece tão líquido que não fossem um fenómeno presente, no meio dos cataclismos sociais sucessivos pelos quais a China estava a passar.
Mesmo agora a política do filho único, conjugada com a preferência por filho do sexo masculino, levou a uma razão de sexos que revela a presença significativa de abortos selectivos de fetos e/ou infanticídio de bebés pelo facto de serem do sexo feminino
Pelo ratio dos sexos no momento do nascimento constata-se que “não aparecem” uns 5% de seres femininos, quer na China, quer na Índia.
Adenda: fotos antigas da China sobre este tema aqui
Marcou-me esta descrição, feita no início do livro, dos pés enfaixados das mulheres
«
A minha avó era uma beldade. Tinha um rosto de forma oval, com faces rosadas e pele sedosa. Usava os cabelos, negros, compridos e muito brilhantes, entretecidos numa grossa trança que lhe caía até à cintura. Sabia ser discreta quando a ocasião o exigia, o que significava quase sempre, mas sob aquele exterior recatado fervilhava um vulcão de energia reprimida. Era de` pequena estatura, um pouco menos de um metro e sessenta, e tinha uma figura muito esbelta, de ombros descaídos, o que era considerado o ideal.
O seu grande valor residia, porém, nos pés enfaixados, chamados em chinês «lírios dourados com oito centímetros»(san- tsun - gin- lian). Significava isto que caminhava «como um tenro rebento de salgueiro numa brisa primaveril», no dizer tradicional dos connoisseurs chineses de mulheres. A visão de uma mulher a caminhar vacilantemente sobre uns pés enfaixados tinha supostamente um efeito erótico nos homens, em parte, sem dúvida, porque a vulnerabilidade dela despertava em quem a via um impulso protector.
Tinha a minha avó dois anos quando lhe enfaixaram os pés. A mãe, que também tinha pés enfaixados, começou por enrolar-lhe à volta dos pés uma tira de pano com cerca de seis metros de comprimento, dobrando todos os dedos, excepto o grande, para dentro e para debaixo da planta. Depois pôs-lhes uma grande pedra em cima, para esmagar o arco. A minha avó gritou de dor e suplicou-lhe que parasse, e a mãe teve de meter-lhe um pano na boca, para amordaçá-la. A infeliz desmaiou diversas vezes, devido à dor.
O processo demorava anos. Mesmo depois de os ossos terem sido partidos, os pés tinham de continuar enfaixados, dia e noite , em tiras de pano, pois no momento em que fossem libertados, tentariam recuperar. Durante anos, a minha avó viveu cheia de dores terríveis e constantes. Quando suplicava à mãe que lhe tirasse as faixas, ela chorava e dizia-lhe que isso arruinaria toda a sua vida futura, e que fazia aquilo pela felicidade dela.
Naqueles tempos, quando uma mulher casava, a primeira coisa que a família do noivo fazia era examinar-lhe os pés. Uns pés grandes, ou seja, uns pés normais, traziam vergonha para a casa do marido. A sogra levantava a orla da comprida saia da noiva e, se os pés tivessem mais de oito centímetros, deixava-a cair, num claro gesto de desprezo, e afastava-se, deixando a pobre rapariga sujeita aos olhares críticos dos convidados, que lhe miravam os pés e murmuravam insultuosamente o seu desdém. Por vezes, uma mãe apiedava-se da filha e tirava-lhe as faixas. Mas quando a criança crescia e tinha de enfrentar o desprezo da família do marido e a reprovação da sociedade, acusava a mãe de ter sido demasiado fraca.
O costume de enfaixar os pés foi introduzido na China há cerca de mil anos, segundo se diz por uma concubina do imperador. Além de a visão das mulheres a coxear sobre uns pés minúsculos ser considerada erótica, os homens excitavam-se a acariciar os pés enfaixados, que permaneciam sempre escondidos nuns sapatinhos de seda bordada. As mulheres não podiam tirar as faixas mesmo depois de adultas, pois os pés começariam a crescer novamente. Só à noite, na cama, lhes era possível aliviar temporariamente o tormento, afrouxando um pouco as tiras de pano. Calçavam, então, uns sapatos de sola macia. Os homens raramente viam nus uns pés enfaixados, que estavam geralmente cobertos de carne apodrecida e exalavam um cheiro horroroso quando se retiravam as faixas. Lembro-me de, em criança, ver a minha avó constantemente cheia de dores. Sempre que regressávamos das compras, a primeira coisa que ela fazia era meter os pés numa bacia de água quente, suspirando de alivio. Depois punha-se a cortar pedaços de pele morta. A dor era provocada não só pelos ossos partidos, mas também pelas unhas, que cresciam para dentro das pontas dos dedos.
Na realidade, os pés da minha avó tinham sido enfaixados precisamente na altura em que a prática estava prestes a desaparecer para sempre. Quando a irmã dela nasceu, em 1917, o costume tinha sido praticamente abandonado, de modo que conseguiu escapar ao tormento.
Na época em que a minha avó cresceu, no entanto, a atitude prevalecente numa cidade pequena como Yixian era ainda a de que os pés enfaixados eram essenciais para um bom casamento - embora fossem apenas um começo.
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É assustador como um disparate cruel como este é capaz de perdurar por 1000 anos!
Obtive este texto do livro "Cisnes Selvagens" aqui
Ao procurar no google "lirios dourados com oito centimetros" fui dar a este post com um resumo do livro e com esta fotografia de sapatinhos para pés enfaixados
Lembrei-me também do álbum do Tintin, “Le Lotus Bleu”, de onde tirei estes quadrinhos:
Sendo a primeira edição do álbum Le Lotus Bleu de 1936, constata-se que a informação sobre o abandono do enfaixamento dos pés das mulheres chinesas ainda não chegara à Europa, o que não me parece de admirar, dado que essa extinção, segundo Jung Chang, ocorrera há cerca de 20 anos.
Neste artigo da Wikipedia fala sobre os pés ligados, com fotografias e radiografias e descrições ainda mais horríveis do processo e das suas consequências. Do que nele li ficaram-me fortes dúvidas da prática estar completamente erradicada em 1936, se tal fosse o caso não haveria necessidade de os comunistas proibirem a prática quando chegaram ao poder em 1949. Há também uma referência da comunidade Hui, maioritariamente islâmica, ter adoptado a prática
Pensei que o costume se tivesse limitado a mulheres reservadas para dar prazer aos seus maridos e que as que tivessem que trabalhar no campo não tivessem sido atingidas mas mesmo estas foram afectadas por este hábito insano, embora um pouco menos do que as primeiras.
O que li reforçou a minha convicção que o tratamento cruel das mulheres em vários casos se propaga pela cópia pela sociedade de práticas inicialmente restritas às classes elevadas e que essas “modas” cruzam com facilidade as fronteiras religiosas. Foi o que aconteceu com a adopção da burka no Afganistão, erradamente confundida com uma prática islâmica.
Já quanto aos infanticídios referidos nos quadrinhos, não me parece tão líquido que não fossem um fenómeno presente, no meio dos cataclismos sociais sucessivos pelos quais a China estava a passar.
Mesmo agora a política do filho único, conjugada com a preferência por filho do sexo masculino, levou a uma razão de sexos que revela a presença significativa de abortos selectivos de fetos e/ou infanticídio de bebés pelo facto de serem do sexo feminino
Pelo ratio dos sexos no momento do nascimento constata-se que “não aparecem” uns 5% de seres femininos, quer na China, quer na Índia.
Adenda: fotos antigas da China sobre este tema aqui
2011-03-07
Janela irreal de Portimão
Depois dos últimos posts sobre as janelas da Maluda não resisti a fotografar esta linda janela numa pastelaria/casa de chá da rua Direita ( de seu nome, que não de sua geometria) em Portimão.
Ao lado está a foto original tirada com o meu telemóvel (apenas com menos pixels). Nas situações "normais" para os fotógrafos amadores (ainda por cima armados apenas de telemóvel) é frequente não estar facilmente acessível o ponto ideal para a tomada de vista.
Neste caso a foto foi tirada duma direcção não perpendicular ao plano da janela, tendo como consequência que a janela se transformou de rectângulo em trapézio. Na imagem seguinte deformei a foto para recuperar a forma rectangular.
Os reflexos são reais bem como o candeeiro aceso por trás da janela. É natural que o reflexo do fotógrafo não apareça, dado o ângulo de tomada da foto.
Mas ao escrever isto uma pessoa começa a ver que se trata também duma imagem com uma pequena dose de irrealidade.
2011-03-01
Maluda, Janela 38 (Elevador da Bica) de 1997 e Jyllands-Posten
Outra janela perfeita, impossível de fotografar, com os azulejos formando uma imagem contínua sem as imperfeições da adjacência das pequenas peças.
A geometria parece perder um pouco da sua perfeição apenas na zona dos reflexos, desta vez é o próprio Elevador da Bica que aparece, com a imagem perturbada por aquelas rendas pesadas usadas nalgumas janelas.
À semelhança doutros reflexos destas janelas da Maluda, este também foi captado por um observador invisível, na vida real o "fotógrafo" deveria também aparecer no reflexo da janela.
Esta imagem vem neste livro, que já referi em post anterior.
Entretanto a ausência de reflexo do fotógrafo no reflexo duma janela fez-me lembrar esta foto que tirei à janela das instalações do jornal dinamarquês Jyllands-Posten na praça Kongens Nytorv em Copenhaga. É provável que a minha ausência no reflexo, em que aparece o Magasin du Nord, se deva a ter tirado a foto com um telemóvel mais antigo em situação de falta de luz, mas não deixei de me surpreender com a minha aparente invisibilidade.
Foi neste jornal que apareceram as 12 caricaturas do Maomé, que tanta celeuma então causaram. Os meus colegas do Magrebe consideraram tal publicação como uma provocação desagradável e desnecessária, que foi também o que me pareceu na altura.
A geometria parece perder um pouco da sua perfeição apenas na zona dos reflexos, desta vez é o próprio Elevador da Bica que aparece, com a imagem perturbada por aquelas rendas pesadas usadas nalgumas janelas.
À semelhança doutros reflexos destas janelas da Maluda, este também foi captado por um observador invisível, na vida real o "fotógrafo" deveria também aparecer no reflexo da janela.
Esta imagem vem neste livro, que já referi em post anterior.
Entretanto a ausência de reflexo do fotógrafo no reflexo duma janela fez-me lembrar esta foto que tirei à janela das instalações do jornal dinamarquês Jyllands-Posten na praça Kongens Nytorv em Copenhaga. É provável que a minha ausência no reflexo, em que aparece o Magasin du Nord, se deva a ter tirado a foto com um telemóvel mais antigo em situação de falta de luz, mas não deixei de me surpreender com a minha aparente invisibilidade.
Foi neste jornal que apareceram as 12 caricaturas do Maomé, que tanta celeuma então causaram. Os meus colegas do Magrebe consideraram tal publicação como uma provocação desagradável e desnecessária, que foi também o que me pareceu na altura.
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