2022-11-14

Uma Geringonça Propriamente Dita

 
Nesta vida de reformado estou frequentemente em casa ao fim da tarde e depois da hora do chá costumo passar algum tempo a ver séries policiais. Há bastante tempo que perdi o interesse em desvendar os mistérios que vão sendo apresentados, vejo os episódios desenrolando-se e aguardo calmamente que me revelem o que “verdadeiramente” se passou. Os cenários são um dos grandes motivos do meu interesse, bem como as conversas e maneirismos das personagens, revelando alguns dos hábitos de cada sociedade onde a acção se desenrola.


Não sei se será uma reacção às dificuldades do cidadão comum em descortinar a verdade no meio das múltiplas perspectivas enviezadas que lhe dão nos meios de comunicação social, aqui não é necessário descobrir a verdade, basta seguir a narrativa.

Ultimamente tenho estado na fase Poirot, um detective que é a personagem mais famosa da escritora Agatha Christie (1890-1976) com uma bibliografia extensa (1921-1976), encarnado na série mais recente (da ITV, de 1989 a 2013, em 13 temporadas num total de 70 episódios) pelo actor inglês David Suchet .

Os episódios que tenho visto parecem ocorrer nos anos 30 do século XX em ambientes ingleses clássicos em casas senhoriais ou em ambientes mais contemporâneos dessa época com forte predomínio da Art Déco. São também admiráveis os automóveis clássicos dessa época e uns mais antigos que ainda sobreviviam na altura, bem como o guarda-roupa de toda aquela gente.

No episódio “Evil Under the Sun” (livro publicado em 1941) a acção passava-se num hotel duma ilha, muito próxima do que os ingleses chamam ali “mainland” (a Grã-Bretanha) que foi traduzida nas legendas por “o Continente”.

A minha curiosidade foi aguçada por uma Geringonça propriamente dita que aparece na  imagem que segue, um veículo de 4 rodas com uma plataforma sobre elevada, avançando pela água em direcção à ilha numa zona em que um banhista em pé tem água quase pela cintura

 



Obtive esta imagem a com a legenda “Burgh Island Hotel in 2005” googlando (pixie cove Agatha Christie) em que “pixie cove” era uma caverna referida no episódio e Agatha Christie a “argumentista” tendo aparecido logo a referência ao Burgh Island Hotel num artigo da Wikipédia onde constava esta imagem.

Seguindo o link “Burgh Island” nesse artigo obtive esta imagem

 

que ilustra o istmo de areia que liga a ilha a terra durante a maré baixa, e que agora aprendi que se chama “tômbolo”.

Lembrei-me logo da praia do Baleal, 3km ao norte de Peniche, mostrada nesta vista aérea
 

 
que encontrei no sítio Baleal Surfcamp.

Os ingleses chamam a esta geringomça “Sea tractor” e este que se estreou em 1969 é o terceiro com este formato a servir  a Burgh Island
 

A Burgh _Island fica na costa sul de Devon, entre Plymouth e Torquay,

 

esta última uma estância balnear onde nasceu Agatha Christie, que gostava muito desta ilha e do seu hotel.

Tinha a ideia que no Canal entre a Inglaterra e a França a amplitude das marés era enorme, chegando a atingir 18 metros em situações excepcionais pelo que me pareceu que a geringonça não conseguiria passar para a ilha quando a maré estivesse alta e por isso fui confirmar a amplitude das marés na Burgh Island
 

 constatando que para este dia (6/Nov/2022) a diferença entre a maré cheia (5,5m) e a maré vazia (1m) seria à volta de 4,5m. Achei pouco, receeei que fosse algum dia excepcional e vi a previsão para uma semana, também na Burgh Island

 
constatando que se mantém a amplitude entre marés de cerca de 4,5m. Considerando que o istmo está acima do nível da maré baixa, na maré alta a altura da água na zona do istmo será menor do que 4,5m.

Fui ver a previsão das marés no Baleal
 


constatando que a amplitude entre marés andará pelos 2,5m, no canal as marés são muito mais fortes do que na costa portuguesa mas não tão grandes como eu esperava.

Sabia contudo que no lado francês do canal, próximo da cidade de Saint-Malo, existe a central maremotriz de Rance, a maior central de marés do mundo quando entrou em serviço em 1966, com 24 turbinas bolbo reversíveis de 10MW cada, perfazendo 240Mw sendo a produção anual de 500GWh.

No folheto da central que facultavam informavam que quando estavam a turbinar para dentro da albufeira e a queda já era muito pequena passavam a bombar para dentro da albufeira pois a cota adicional na albufeira nesse período de 1 ou 2 metros dava origem depois quando a maré vazava, a uma queda da amplitude da maré mais esses 1 ou 2 metros de queda.

Fui ver as cotas em Saint-Malo
 


constatando que o valor da amplitude das marés andava nessa altura por volta dos 9m, o dobro da amplitude em Burgh Island, parecendo verosímil que em situações muito excepcionais atinga os 18m.

A distância em linha recta entre Burgh Island e St.Malo é 220km e julgo que a razão da diferença nas amplitudes das marés destes dois sítios se deve à costa francesa entre o Monte de Saint_Michel e La Hague, numa extensão de 110km que, constituindo uma barreira ao movimento da água do Oceano Atlântico quando entra no canal, provoca nessa zona uma sobreelevação da cota da maré alta.

Lembro-me bem da impressão que me fez a amplitude das marés no porto de Bristol, quando visitei esta cidade em1983, constatando agora que na semana de 6 a 12/Nov/2022 era de 9m. Neste caso a grande amplitude deve-se ao afunilamento do Canal de Bristol que liga o Oceano Atlântico ao estuário do rio Severn e, segundo li, a amplitude das marés dem Bristol é a segunda maior do mundo.

Nos meses de Julho, Agosto e Setembro de 2022 a amplitude média da maré na praia de Alvor no Algarve foi de 2 metros.


 

3 comentários:

João Brisson disse...

Deixaste em suspenso a parte de como se move a geringonça
Ficou para o post seguinte?

jj.amarante disse...

Não, deixei links para informação adicional no próprio texto, da entrada da Wikipédia "Burgh Island Hotel" tirei agora:
- "The current, third generation tractor dates from 1969. The vehicle drives across the beach with its wheels underwater on the sandy bottom while its driver and passengers sit on a platform high above. Power from a Fordson (https://en.wikipedia.org/wiki/Fordson) tractor engine is relayed to the wheels via hydraulic motors."

J Ricardo disse...

Tema e informações interessantes e curiosas, gostei de ler. Eu não gosto por séries policiais, mas como alguém aqui em casa gosta de as ver, por vezes estou uns minutos a dar umas vistas de olhos e concordo que os episódios de Poirot estão muito bem feitos como reconstituição histórica e de ambientes. Por outro lado, há por lá muito bons atores. Isto tudo torna a série interessante. Quanto a geringonças, essa plataforma marítima motorizada está bem imaginada. No entanto, por exemplo pensando na Ria Formosa, uma engenhoca destas seria muito inestética, prefiro umas pequenas embarcações para levar as pessoas.