A palavra tem pouco uso na língua portuguesa, quase que não temos o conceito de pouca familiaridade com os números e com as ordens de grandeza das características numéricas de fenómenos dos mundos físico, económico ou social que nos rodeiam. No Google este termo deu-me 869 resultados e nesta entrada do Ciberdúvidas referem também a palavra inumerismo. Enquanto “inumeracia” será um anglicismo derivado de “innumeracy”, “inumerismo” parece ter uma formação mais consistente com analfabetismo. Mas prefiro inumeracia e é o que vou usar.
Tive o primeiro contacto com este conceito ao ler em Maio/1982 o ensaio de Douglas Hofstadter “On Number Numbness” (disponível em .pdf aqui ) na rubrica “Metamagical Themas” da revista Scientific American. A colectânea de ensaios Metamagical Themas foi reunida em livro que já referi a propósito do Cubo de Rubik, do Reconhecimento de padrões e da Ubiquidade da omissão. Dizia o autor que tinha dificuldade em compreender porque não havia na sociedade uma censura tão grande à ignorância dos números como a que existia em relação às palavras.
Este não é um fenómeno específico da América, são inúmeros os casos de confusão de uma ou mais ordens de grandeza nos jornais que se publicam em Portugal, onde a situação será provavelmente pior.
Às vezes penso que em Portugal passámos a grande velocidade da Idade Média em que a maior parte das coisas era uma questão de fé ou de autoridade divina ou do seu representante na terra para um pós-modernismo em que todas as opiniões se equivalem, havendo sempre grande dificuldade em aceitar por cá aquele conceito Iluminista de que também existe um mundo objectivo independente da nossa fé, da nossa vontade ou da nossa opinião. À ausência de conhecimento numérico do mundo físico adiciona-se a constante ausência de conhecimento numérico das finanças portuguesas, com todos os governos a descobrir pesadas heranças e grandes buracos nas contas públicas. Ainda a propósito de contas não resisto a citar um uma dúvida do Engº Ferreira Dias, facilmente aplicável aos argumentos que os nossos políticos usam quando estão no governo e quando estão na oposição:
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O primeiro refere-se ao cálculo do preço de custo do kWh. Há contas-tipo de quem compra e contas-tipo de quem vende: e o mesmo indivíduo colocado nos dois lados da barricada com uma hora de intervalo renega serenamente da segunda vez as contas que defendeu da primeira. Chega a preocupar esta espécie de uniformidade profissional dos vendedores por um lado e dos compradores pelo outro, como se houvesse entre êles um voto secreto. Não se pensa que lhes falta sinceridade: chega-se antes a ter a convicção de que não existe o livre arbítrio.
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In “Estatística das instalações eléctricas em Portugal referente ao ano de 1936”, Junta de Electrificação Nacional, 31 de Agôsto de 1937. – O Engenheiro Presidente. Ferreira Dias.
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Gostaria ainda de referir o livro de John Allen Paulos intitulado precisamente “Innumeracy”, que mostra as consequências muito desagradáveis e infelizmente tão frequentes da ignorância generalizada sobre Matemática e particularmente sobre Probabilidades e Estatística.
Há também uma referência ao paradoxo de Condorcet e ao teorema da impossibilidade de Arrow que tratam das dificuldades na escolha de uma preferência entre 3 ou mais possibilidades através de votação. O paradoxo de Condorcet foi apresentado no século XVIII e mostra que para um dado sistema de votação, que à primeira vista parece razoável, existem situações em que dá resultados insatisfatórios. O teorema de Arrow é mais geral, constituiu a sua tese de doutoramento em 1951 e demonstra a inexistência de sistemas de votação que, para escolher entre 3 ou mais alternativas, dêem resultados que gozem de propriedades que parecem razoáveis, quaisquer que sejam as preferências dos votantes.
A conclusão não é tão grave como parece à primeira vista, existem sistemas de votação que dão resultados satisfatórios na esmagadora maioria dos casos, embora existam situações limite em que não são perfeitos. O teorema de Arrow tem a enorme vantagem de mostrar que a busca de um sistema de votação perfeito é inútil porque ele não existe, temos que nos contentar com um que seja muito bom. Há neste sentido de inutilidade de busca da perfeição absoluta, uma afinidade com o teorema da incompletude de Gödel “no qual afirma que qualquer sistema axiomático suficiente para incluir a aritmética dos números inteiros não pode ser simultaneamente completo e consistente”.
Gostei dum caso interessante com dados de 6 faces em que os dados, em vez de terem em cada face o conjunto {1, 2, 3, 4, 5, 6}, têm a seguinte composição:
- dado A: {4, 4, 4, 4, 0, 0}
- dado B: {3, 3, 3, 3, 3, 3}
- dado C: {2, 2, 2, 2, 6, 6}
- dado D: {5, 5, 5, 1, 1, 1}
Se lançarmos A e B constataremos que em 2/3 dos casos o dado A terá a face de cima com um valor maior do que o dado B. Para o par B e C, B “ganha” em 2/3 dos casos, para o par C e D, C ganha em 2/3 dos casos. O que me surpreendeu foi que no par D e A, o dado D ganha em 2/3 dos casos! Trata-se de uma ordenação (parcial) não transitiva em que A é “maior que” B, B “maior que” C, C “maior que” D mas D é “maior que” A! No dia a dia, por exemplo no futebol, uma pessoa sabe que isto acontece, mas fiquei surpreendido com este resultado numa situação tão simples de 4 dados de 6 faces, em comparação com a complexidade das técnicas e das forças de ânimo das equipas de futebol.
1 comentário:
É um texto muito interessante e não só a parte sobre a relação de ordem não transitiva (que não conhecia). Concordo que existe uma estranha sobrevalorização de algumas ignorâncias relativamente a outras e também me desagrada a alegre balbúrdia pós-moderna - que está longe de ser especialmente portuguesa, creia. Acho particularmente interessante a questão da impossibilidade de critérios satisfatórios de escolha entre três ou mais alternativas. O link para o ensaio de Douglas Hofstadter já não está a funcionar.
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