Na sequência do apagão ibérico de 28/Abril/2025, em que Portugal ficou sem electricidade durante cerca de dez horas, falou-se bastante sobre o que aconteceu, entre outras coisas sobre a importância das centrais de arranque autónomo.
Estas centrais (em inglês de “Blackstart”) podem iniciar a sua operação mesmo que o sistema electroprodutor a que estão ligadas esteja completamente fora de serviço. As centrais sem esta capacidade precisam de absorver inicialmente alguma energia do sistema de transporte para após o seu arranque começarem a entregar energia ao sistema referido.
Dotar uma central hidráulica de arranque autónomo é tecnicamente mais simples e mais económico do que dotar uma central térmica desse tipo de capacidade. Dentro das térmicas o arranque autónomo das centrais a gás é mais simples do que das centrais a carvão.
A central hidroeléctrica de C.Bode (Castelo de Bode) localizada na barragem do mesmo nome iniciou funcionamento em 1951, sendo a primeira central hidroeléctrica em Portugal com uma potência maior do que 100MW (Mega Watt, unidade de potência). No mesmo ano entrou em serviço a central de Vila Nova turbinando água da albufeira de Venda Nova.
Não sei se existia arranque autónomo na Vila Nova mas a central de C.Bode teve arranque autónomo desde a sua entrada em serviço, tendo este sido utilizado muitas vezes durante a década de 50 do século XX.
Na imagem seguinte, que tirei em 25/Mar/2008, mostro os três geradores principais da central, cada um com uma turbina do tipo Francis de eixo vertical, capaz de gerar um pouco mais de 50MW, dependendo da cota da água da albufeira, perfazendo um total superior a 150MW. São máquinas grandes quando comparadas com as figuras humanas na imagem
Existem condutas da água da albufeira que terminam em cada um destes grupos de turbina hidráulica e alternador existindo em cada par de conduta/grupo uma válvula esférica que terá que ser aberta na fase de arranque.
Para abrir essa válvula (uma espécie de torneira gigante) será necessário colocar em marcha um motor eléctrico. Esse motor precisará então que um dos dois grupos auxiliares existentes na central forneça electricidade. Mostro esses dois grupos na imagem seguinte que encontrei no Linkedin de Fernando Caldas Vieira
e ainda outra imagem que tirei também em 25/Mar/2008, com uma pessoa que dá melhor a dimensão desta máquina. Disseram-me que cada um destes geradores (turbina tipo Francis de eixo horizontal) tinha uma potência de 1 MW (1MW= 1000kW).
Surpreendeu-me um bocado a dimensão e potência destes grupos cujo arranque pode ser feito manualmente, bastando para tal abrir uma pequena válvula esférica que controla a saída de uma conduta de água ligada à albufeira. Segundo uma estimativa que ouvi bastariam umas centenas de KW para arrancar os grupos grandes na primeira imagem deste post.
Nessa altura não existia uma Rede Nacional de Transporte de Electricidade, uma “rede” pressupõe a existência de malhas contendo percursos alternativos, resumindo-se o transporte de electricidade em MAT (Muito Alta Tensão, inicialmente 150kV) a uma sequência de linhas em série:
- Central de Vilanova – Subestação de Ermesinde;
- Subestação de Ermesinde – Subestação do Zêzere (a que se ligava C.Bode);
- Subestação do Zêzere – Subestação de Sacavém.
Mesmo assim, com esta configuração era possível pela primeira vez abastecer as cidades de Lisboa e do Porto com energia hídrica gerada a centenas de quilómetros do local de consumo.
Em 1951 embora existissem numerosas pequenas centrais para consumos locais, os sítios onde se construíam centrais hidráulicas grandes eram remotos, sem electricidade e sem mais uma data de coisas. A construção de cada grande central hídrica, com o seu bairro de casas de habitação decentes para albergar os trabalhadores da central e alguns edifícios para cuidados médicos, educação e convívio da comunidade eram verdadeiras ilhas de civilização do meio do panorama desolador da sociedade rural portuguesa.
O sobredimensionamento para o arranque autónomo destes grupos auxiliares devia-se assim à sua utilização adicional para abastecer o consumo eléctrico do bairro dos trabalhadores da central.
A potência dedicada ao arranque autónomo é necessária para abrir a válvula esférica com o respectivo êmbolo de controlo do primeiro grupo de 50 MW que se mostra a seguir,
estabelecer pressão do óleo lubrificante para o grupo poder rodar sem se danificar e finalmente abrir o distribuidor regulável, situado debaixo do anel metálico pintado de vermelho da imagem seguinte, que roda pela acção de dois êmbolos visíveis na foto e que controla o fluxo de água maior ou menor que “atacará” as pás da turbina
A rotação da turbina hidráulica será comunicada ao alternador através do eixo/cilindro metálico presente na foto que accionará o alternador colocado numa cota mais elevada.
A central tinha uma sala de controlo com indicações do estado dos grupos e dos diversos sistemas de apoio ao funcionamento da central e um frequencímetro objecto de observação permanente do operador de turno que garantia a frequência objectivo de 50Hz na gama das pequenas variações, as grandes variações eram tratadas pelo Despacho Nacional alterando telefonicamente pontos de funcionamento de geradores, entradas e saídas dos mesmos.
Em 1961 deu-se a primeira interligação com a rede europeia através de ligações com linha de transporte da Iberduero no Douro internacional. A frequência da rede passou a ter uma enorme estabilidade em comparação com a situação anterior a esta interligação.
Embora o arranque autónomo continuasse disponível, o procedimento preferido em caso de apagão nacional era esperar que a Espanha fornecesse tensão a partir da linha de interligação e restaurar o sistema a partir dessa linha pois restaurar um sistema a partir duma ilha com pouca geração e consumo é uma tarefa muito delicada, qualquer variação brusca de consumo ou de produção pode provocar variação de frequência que leve ao disparo de geradores e a novo apagão.
Desde que entrei na EDP em Maio/1976 não me recordo de ter ocorrido um apagão nacional antes de 28/Abril/2025. À interligação com Espanha em 1961 sucedeu a instalação nos anos 70 de numerosos relés de deslastre frequencimétrico. Quando se dava uma variação brusca do saldo na interligação por saída abrupta de um grupo provocando o seu disparo, a diminuição de frequência subsequente por Portugal ficar separado da Europa era eliminada por estes relés que, cortando automatica e rapidamente algum consumo, evitavam o colapso completo do sistema que era depois reposto de forma muito mais rápida com o arranque de grupos disponíveis na altura do incidente.
O famoso apagão da cegonha em 9/Maio/2000 não foi “nacional”, apagando “apenas” o consumo de Lisboa e da região ao Sul do Tejo, tendo o serviço sido reposto em menos de duas horas.
Este post já está tão comprido que vou ficar por aqui. Possivelmente farei outro post descrevendo acções posteriores para que o arranque autónomo ficasse mais fácil.

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3 comentários:
Boa tarde.
Cheguei aqui através de link do "Expresso". Muito instrutivo, obrigado.
O excelente texto do Amarante veio trazer-me recordações dos primeiros tempos da minha carreira profissional. Terminado o serviço militar entrei, em junho de 1956, para a Subestação do Zêzere da CNE (Companhia Nacuinal de Eletricidade), responsável pelas linhas e subestações da recém criada Rede de Transporte. A subestação ficava junto à central, que pertencia a outra empresa, a Hidoelétrica do Zêzere. Ambas fizeram parte do conjunto de empresas que deram origem à EDP.
Embora trabalhando em empresas diferentes, a proximidade porporcionava um bom convívio entre colegas e, no meu caso, dando-me um bom conhecimento da central. Os dois grupos auxiliares eram-me familiares.
Para além do trabalho de vigilância das linhas e da conservação do equipamento da subestação, os engenheiros das Subestações de Ermesinde e do Zêzere, tinham outra tarefa, assegurar, de forma bastante rudimentar, as funções do futuro Despacho.
De acordo com a orientação transmitida de Lisboa pelo RNC, definida em função da hidraulicidade e das reservas nas várias albufeiras, os dois engenheiros, um de cada lado, elaboravam o programa diário da repartição, de hora a hora, das várias centrais para responder ao consumo previsto. O programa era posto nas salas de comando, e eram os operadores de serviço que davam as ordens às centrais para a entrada e saída dos grupos, e variação da carga. O prgrama era feito a lápis, numa folha A4. O funcionamento de tudo isto era uma espécie de pre-despacho que funcinou duranrte alguns anos, até à entrada do primeiro Despacho, instalado na Subestação de Pereiros, perto de Coimbra.
Resta-me acrescentar que a Rede de 150 kV era muito simples, só havia centrais hidroelétricas e o Castelo de Bode regulava a frequência.
Tínhamos pessoal de qualidade e saber ! Perdemos tudo nos últimos anos?
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