Noutro dia alguém me enviou num e-mail este texto execrável escrito por uma aristocrata portuguesa em 1927, portanto há 90 anos:
De vez em quando deploro e lamento esta vergonha nacional do analfabetismo em Portugal em pleno século XX e costumo sempre referir que essa é a pesada herança que nos deixou Salazar e seus entusiásticos apoiantes e não o ouro entesourado no meio da profunda miséria da sociedade portuguesa durante a maior parte desse século.
É evidente que a existência de tantos analfabetos num país dum continente onde todos os outros países tinham reduzido a taxa de analfabetismo a valores residuais deveria coexistir com opiniões obscurantistas como a que acabo de transcrever.
Porém, nos tempos que correm é muito fácil pôr a circular textos forjados na Internet pelo que “googlei” o nome da alegada autora do texto tendo chegado a uma
entrada da Wikipédia que curiosamente apenas existe em língua inglesa.
Constatei portanto que a pessoa existira e que embora tenha dedicado tempo a criar literatura para crianças e a escrever livros sobre como governar uma casa e como educar os filhos, deveria considerar os seus como feios, fracos e pouco saudáveis em comparação com os alegadamente melhores representantes da alma portuguesa, os nessa altura 75% de analfabetos.
Através dessa busca cheguei também a um artigo muito interessante de Maria Filomena Mónica, publicado em 1977 na revista “Análise Social” intitulado “
«Deve-se ensinar o povo a ler?»: a questão do analfabetismo (1926-39)” e disponível no
link do título.
Achei o artigo muito esclarecedor sobre as opiniões em confronto, não tive disposição (ou arte) para fazer um resumo do mesmo mas não resisti a transcrever partes do texto de 33 páginas, para estimular uma leitura completa:
«
1. A QUESTÃO DO ANALFABETISMO
O debate que se realizou na Assembleia Nacional em 1938 constitui uma das mais importantes fontes da ideologia salazarista no que respeita à educação popular. A Assembleia reuniu para discutir a reforma da instrução primária do ministro Carneiro Pacheco, Mas a discussão deu lugar a uma desenvolvida e reveladora exposição da nova ideologia oficial, que negava os mais caros princípios pedagógicos do liberalismo e do republicanismo e, consequentemente, o ideal de um sistema de escolaridade obrigatória e gratuita.
a) AS «CAUSAS» DO ANALFABETISMO
O facto de, em 1930, em cada 100 portugueses 70 não saberem ler chocava algumas pessoas e, simultaneamente, tranquilizava outras. Para os sectores mais progressivos da intelligentsia portuguesa, que sempre se haviam envergonhado com uma taxa tão alta, o analfabetismo era o principal obstáculo ao desenvolvimento do País. Para os salazaristas, porém, era uma virtude.
...
Os salazaristas ressuscitaram a crença tradicional (para cuja divulgação durante o século xix contribuíra, entre outros, Ramalho Ortigão) de que o povo português «não sentia necessidade de aprender». Mas os republicanos adoptaram a explicação, não menos convencional, de que o analfabetismo se devia aos padres, à «reles canalha da batina».
»
Um pouco depois refere o texto de Virgínia de Castro Almeida que mostrei acima, comentando-o desta forma:
«
Em 1807, o presidente da English Royal Society usara exactamente os mesmos argumentos para combater a proposta de lei relativa à introdução de escolas elementares em Inglaterra. Mas isso fora em 1807.
»
e sobre a igualdade prossegue:
«
Alguns sociólogos contemporâneos mostraram como as sociedades industriais avançadas utilizam o sistema escolar para legitimar as desigualdades sociais, fundando-se na ideologia meritocrática segundo a qual as posições privilegiadas são acessíveis a todos os indivíduos de igual talento.
As sociedades democráticas, em especial os Estados Unidos da América, sentiram a necessidade de justificar as profundas desigualdades económicas que nelas se mantêm, apesar dos proclamados ideais de liberdade, fraternidade e igualdade. Uma das formas possíveis de justificação residia em explicá-las por diferenças individuais inatas de capacidade intelectual, como reveladas pela selecção escolar. Sendo a transferência de status por via hereditária condenada pela ortodoxia do poder, passou a considerar-se a diferenciação social como produto de aptidões individuais.
A visão salazarista da sociedade como uma estrutura hierárquica imutável conduziu a uma concepção diferente do papel da escola: esta não se destinava a servir de agência de distribuição profissional ou de detecção do mérito intelectual, mas sobretudo de aparelho de doutrinação. Para o salazarismo não havia, aliás, qualquer razão para justificar as desigualdades económicas, que eram inevitáveis e instituídas por Deus, E convinha até, pelo contrário, rebater as falsas ideias do passado que apresentavam a escola como a «grande niveladora». Salazar afirmava mesmo categoricamente que a educação, só por si, pouco nivelaria, ou seja, que numa sociedade naturalmente hierarquizada, a educação pouco poderia contribuir para uma maior igualdade
»
prosseguindo
«...
O ataque mais articulado contra a escola única surge em 1928 pela pena de Marcello Caetano. Vamos analisá-lo em certo pormenor,
...
Deste modo, M. Caetano, reconhecia, e aceitava, o papel que os factores sociais desempenhavam no desenvolvimento intelectual, mas para negar a possibilidade de mobilidade ascendente. Nas suas próprias palavras: «Uma criança inteligente, filha de um operário hábil e honesto, pode, na profissão de seu pai, vir a ser um trabalhador exímio, progressivo e apreciado, pode chegar a fazer parte do escol da sua profissão, e assim deve ser.» Cada classe possuía a sua hierarquia interna, nos limites da qual o mérito contava. Num sentido mais lato, porém, o status era herdado.
Nestas condições, a escola única acarretaria desastrosas consequências para os indivíduos que através dela se promovessem. Filho de operário que «subisse» por intermédio da «escada educacional» pagava um alto preço: «Seleccionado pelo professor primário para estudar ciências para as quais o seu espírito não tinha a mesma preparação hereditária que tinha para o ofício, não passaria nunca de um medíocre intelectual, quando muito um homem sábio, mas incapaz de singrar na vida nova que lhe [haviam indicado] sem o ouvir.»
»
Pensaram em punir os analfabetos para acabar com o analfabetismo
«
... No entanto, só uma pena foi instituída por lei: em 1929, um decreto proibiu os analfabetos de emigrar. Mas nunca se cumpriu.
...»
não me parecendo que isso fosse uma punição mas antes uma manifestação de apreço: a nação não podia prescindir desse recurso tão apreciado que constituíam os seus analfabetos.
Referindo depois a reforma de 1937
«
A reforma de Carneiro Pacheco, de 1937, coroou todas as tentativas anteriores de cristianizar a escola e realizou as aspirações mais reaccionárias quanto à redução do currículo escolar e à supremacia da religião no ensino. Nas palavras do Diário da Manhã, a escola podia finalmente devotar-se a «formar o espírito e o carácter da criança», livre das «preocupações enciclopedistas», que tanto a haviam prejudicado. Como um inspector escreveu por essa altura, parafraseando a doutrina oficial, «por muito que se glorifiquem as letras do alfabeto, convençamo-nos de que a luz que delas irradia só perdurará se atingiras consciências e puder fecundar as almas. O nosso trabalho há-de consistir principalmente em prover as crianças de sólidas virtudes cristãs, entre as quais o amor ao trabalho, a disciplina da ordem e a alegria de viver.» A trilogia final sintetiza o programa do Estado Novo para a escola primária.»
e a redução da escolaridade obrigatória
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Dois corpos de legislação merecem ser aqui mencionados, porque estabeleceram as principais transformações que o Estado Novo introduziu no sistema escolar primário. Com a justificação de que era necessário reduzir as despesas públicas e impedir a «acumulação» de um número excessivo de alunos nos liceus, reduziu-se a escolaridade obrigatória, primeiro para quatro119 e depois para três anos120. Esta redução foi acompanhada da limitação das matérias ensinadas, de acordo com a doutrina de que «saber ler, escrever e contar é suficiente para a maior parte dos Portugueses.» E, como não fazia sentido transmitir muitos conhecimentos a alunos que apenas viriam a desempenhar trabalhos servis, tudo o que ultrapassava as aptidões mais elementares passou para um sistema «complementar», que, encerrado em 1932, não voltou a abrir. O Decreto-Lei n,° 27 279 definia claramente a nova ortodoxia: «O ensino primário elementar trairia a sua missão se continuasse a sobrepor um estéril enciclopedismo racionalista, fatal para a saúde moral e física da criança, ao ideal prático e cristão de ensinar bem a ler, escrever e contar e a exercer as virtudes morais e um vivo amor a Portugal.»»
A espécie humana conseguiu, através do estabelecimento de regras, procedimentos e valores de diversa natureza, obter progressos muitíssimo mais rápidos do que os que conseguem ser introduzidos no ADN da espécie, através da selecção natural de mutações favoráveis, que precisam de milhões de anos. Mas estes progressos, se bem que rápidos, não alteram a natureza humana pelo que precisam de um esforço de manutenção permanente para evitar retrocessos e/ou evoluções em sentidos desfavoráveis.
A conquista da alfabetização generalizada da população foi um enorme progresso que tem que ser defendido.