Na semana passada fui fazer "prova de vida" para continuar a ter acesso a transportes públicos gratuitos em Lisboa, na minha condição de residente na cidade, com mais de 65 anos. É necessária uma visita presencial eufemisticamente chamada "validação do desconto", neste caso de 100% para continuar a viajar gratuitamente.
Há dois anos que faço esta validação no quiosque da Carris no Arco do Cego, em Novembro pois quando tentei agendar em Out/2023 só consegui vaga em Novembro. Este mês é melhor para revalidar pois em Outubro chegam muitos estudantes, para tratar de obter estes descontos pela primeira vez, que saturam os balcões de atendimento.
Agora o quiosque da Carris está encerrado para obras, não existindo previsão publicada de conclusão das mesmas, situação banal, assim como é banal que a previsão de conclusão seja ultrapassada mas, mesmo assim, não acho que quer esta ausência de data quer a sua ultrapassagem por tempos da ordem de grandeza da duração da obra seja compatível com um país que se diz "desenvolvido".
Fui então à loja do cidadão sobre o Mercado do Saldanha, onde fui atendido no balcão da Carris em menos de um quarto de hora sem necessidade de agendamento.
Depois fui a pé pela Almirante Barroso, Pascoal de Melo e Almirante Reis até ao Metro da Alameda, tomando nota do abundante pequeno comércio e da recuperação de muitos prédios que há umas décadas tinham passado por estados deploráveis e da quantidade de lojas que mudou de ramo de actividade.
No nº111 da Rua Pascoal de Melo vi este acesso ao interior de quarteirão limitado por um portão que se encontrava aberto como na imagem que obtive no GoogleMaps
Entrei pelo corredor movido pela curiosidade, com receio de encontrar a miséria das antigas "ilhas" da cidade do Porto.
Fui agradavelmente surpreendido pela limpeza e organizaçao do local, com fiadas de casas e automóveis em bom estado que presumo serem de residentes. Não tirei fotos na altura mas procurei depois na internet e encontrei referência a esta Vila Luz em S.Jorge de Arroios (Fig.19) numa Dissertação para o grau de mestre em Arquitectura onde referem numerosas Vilas Operárias em Lisboa.
Neste blogue tem mais fotos do local aparentemento a ser requalificado (Set/2013) e noutro sítio da net confirma que as casas desta Vila foram objecto de requalificação. Dado que não existe actividade industrial nas proximidades já não serão habitadas por operários.
No Google Maps enquadrei esta Vila
constatando que a área de cada telhado da fiada de 5 casas na parte de baixo da imagem tem uma área de 100m2. Não sei se seriam unidades unifamiliares.
Esta área é um valor muito diferente dos 16 m2 de cada lar de uma ilha da cidade do Porto, com um sanitário para cada cinco fogos como refere este artigo da Wikipédia intitulado"Ilha (bairro)". Nasci no Porto em 1949 e vivi lá até 1959 quando a família se mudou para Lisboa. Tinha portanto menos de 10 anos quando vi uma dessas ilhas do Porto, do lado esquerdo quem desce a Rua da Boavista, antes do cruzamento com a rua do Barão de Forrester, provavelmente na Rua das Águas Férreas onde existe agora o Bairro da Bouça. Das ilhas que eu raramente entrevi então no Porto ficou-me a impressão de zonas caóticas, acanhadas, infectas e imundas que me horrorizaram. Foi uma das pesadas heranças do Salazarismo em Portugal.
Provavelmente alguns dos meus colegas de turma na Escola pública nº 72 que frequentei no fim da Rua de Álvares Cabral, ao pé da igreja de Cedofeita antiga, que andavam descalços (dizia-se então de pata descalça) viviam nessas ilhas.
Conforme refere na Wikipédia Ilha (bairro) ouve um esforço prolongado no tempo de realojamento dos habitantes das ilhas para bairros sociais. As ilhas costumavam existir no centro da cidade, os seus habitantes não teriam dinheiro para os transportes públicos, mas seria muito difícil construir as habitações sociais de realojamento próximo das ilhas existentes.
Neste artigo do Observador sobre as ilhas típicas do Porto apresento a imagem respectiva
uma espécie de versão Disneylândia da realidade. Achei engraçada e potencialmente uma boa ideia recolher a água da chuva no telhado em tanques de lavar a roupa. Mas com o aparecimento de lavandarias automáticas funcionando com moedas ou cartões, até no parque de estacionamento do LIDL em Portimão, custa-me a acreditar que estes tanques venham a ser usados para lavar roupa, serão provavelmente um elemento decorativo. Se as ilhas reais tivessem este aspecto até não seriam más de todo mas, a sua utilização para morada permanente dum casal com filhos, dificilmente seria tão adequada como para um quarto de casal num alojamento local de curta duração. É portanto conveniente para turistas e estudantes mas inadequado para famílias.
Em Lisboa a situação das famílias mais pobres resolvia-se com a sobrelotação das casas existentes e com o aparecimento dos bairros de barracas como a Curraleira, por trás da rua Barão de Sabrosa e tantas outras em Lisboa e na sua periferia, designadamente em leitos de cheia no concelho de Loures onde morreram centenas na escuridão de uma noite de muita chuva em 1967. Houve dois números que eu fixei, em 1965 apenas 14% dos lares em Lisboa dispunham de instalações sanitárias, segundo disseram numa aula de Religião e Moral no 6º ou 7º ano do liceu. Nos fins da década de 60 cerca de 25000 pessoas chegavam por ano vindas da província para habitar na capital, citando homilia duma missa na igreja de Arroios. Nessa década 1 milhão de portugueses emigrou para a Europa, o país perdeu cerca de 10% da sua população.
Em Lisboa fizeram-se bairros sociais imensos como, por exemplo, na zona de Chelas e Marvila, a província urbanizou-se tardiamente, em todas as cidades e vilas vêem-se bairros sociais de construção recente, onde foram aplicados fundos da CEE. Resumindo um inglês, ao ver tanta construção pelo país fora disse que quando Portugal estivesse concluído iria ficar muito bonito.
Outra actividade em que se usaram os fundos europeus foi no saneamento básico. A situação era tão má que a urbanização intensa por exemplo de Oeiras, com prédios de andares onde anteriormente quase só existiam vivendas, teve como consequência a interdição para banhos da praia de Oeiras à semelhança da quase totalidade das praias da linha do Estoril durante décadas, como consequência dos esgotos pluviais servirem também para escoamento dos esgotos domésticos.
A separação das redes de esgotos domésticos e pluviais e a instalação e operação bem sucedida das estações de tratamento de esgotos foi outra das actividades importantes e dispendiosas em que foram empregues os famosos fundos da CEE, que não foram só aplicados no melhoramento das estradas e na construção algo excessiva da rede de autoestradas.
Receei que a citação simples no texto acima de dois números memorizados (14% e 25000) criassem dúvidas sobre a sua validade. Pelo menos o primeiro é confirmado em "Portugal Social em Mudança - 50 anos do 25 de Abril" da Universidade de Lisboa de que cito este pequeno excerto:
« Esta situação adquire contornos mais calamitosos se medida em percentagem da população. Segundo um estudo sectorial sobre o saneamento básico em Portugal, desenvolvido pela Organização Mundial da Saúde (1975), o país terá chegado à década de 70 do século XX com apenas cerca de 40% da
população servida por abastecimento domiciliário de água, e não mais de 17% ligada à rede de esgotos (Schmidt 2009) »
Foi por isso com satisfação que passei noutro dia pela rua do Sol ao Rato em que o 15A dá acesso à Vila Visconde Santo Ambrósio onde fotografei estas lindas casinhas cuja área no GoogleEarth dá cerca de 55m2, possivelmente também para turistas e/ou estudantes
Na mesma rua do Sol ao Rato gostei desde prédio no nº 24
com a empena pintada toda em azul ultramarino, no mesmo tom da fachada, a confundir-se com o céu.
Não podia deixar de me lembrar da casa no jardim Majorelle em Marraquexe cujas plantas iluminadas mostrei aqui e da sua casa azul de que falei aqui de que mostro uma foto retirada da Wikipédia "Jardin Majorelle"
Photo par Viault — Travail personnel