Ultimamente, a propósito duma alegada impreparação da Europa para se defender da Rússia, tem-se tornado frequente a narrativa que o Estado Social na Europa se tornou possível por os EUA (Estados Unidos da América) garantirem a defesa da Europa permitindo poupanças nos gastos da defesa dos europeus e permitindo-lhes assim financiarem o seu Estado Social.
Por exemplo Vasco Pulido Valente escreveu no jornal Público em Fev/2015 “E se a Europa não se tivesse desarmado, como desarmou, para pagar o Estado social.”
Pedro Norton tem uma opinião semelhante em “A humilhação da Europa”
Ainda no jornal Expresso em 03/Jul/2025 Miguel Monjardino afirma “Os EUA já não possuem os recursos para continuar a subsidiar o Estado Social e a defesa dos países europeus como o fizeram no passado”
Isto é um enorme disparate, decorrente da argumentação falaciosa de Trump, com uma consistência semelhante às contas erradas de merceeiro usadas para definir inicialmente as tarifas alfandegárias com diversos países.
No fim da guerra de 1939-45 os EUA e a URSS e numa primeira fase os aliados (Inglaterra e França) ocuparam militarmente as nações vencidas na Europa, a Alemanha e a Itália. O Japão foi ocupado apenas pelos EUA. Dos países europeus invadidos previamente pela Alemanha os mais a ocidente como a Bélgica, a Holanda a Noruega e a Dinamarca regressaram aos regimes existentes antes da guerra, os mais a leste ficaram com bases militares da URSS durante algum tempo, os partidos communistas locais tomaram o poder e sofreram invasões militares na Hungria em 1956 e na Checoslováquia em 1969 na sequência de movimentos políticos de contestação dos regimes aí existentes.
Os EUA não estiveram disponíveis para retirar as bases militares na Alemanha Ocidental nem a URSS na Alemanha de Leste. Os EUA provavelmente não confiavam na força dos seus aliados ocidentais após a guerra. Ambos dotaram-se de bombas atómicas mas os ingleses perderam o imenso império, designadamente a Índia, jóia da coroa, logo em 1947. Os franceses tinham resistido pouco aos alemães. As potências beligerantes europeias tinham-se armado mais uma vez entre 1918 e 1939 e arrasado imensas cidades por toda a parte. Os EUA pareciam ser o único adulto na sala.
Em 1956 durante a crise do canal do Suez, devida à nacionalização da empresa anglo-francesa que tinha a concessão do canal decidida pelo governante egípcio Nasser, a França e a Inglaterra foram pressionadas pelos EUA, URSS e ONU para retirar as forças militares que tinham enviado para a região.
Depois deste incidente as antigas potências militares europeias tomaram consciência amarga da sua irrelevância e, à falta de melhor, empenharam-se na NATO que lhes pareceu uma opção razoável como defesa contra a URSS, e razoável permaneceu até à primeira presidência de Trump de Jan/2017 a Jan/2021.
Os EUA garantiram a segurança da Europa desde 1945 não pelos lindos olhos dos europeus e muito menos para subsidiar o Estado Social comum neste continente mas para conter a URSS durante a guerra fria e evitar o rearmamento quer da Alemanha quer do Japão.
Embora os europeus tenham conseguido progressos na União Europeia e até criar a moeda Euro, muito criticada pelos EUA na altura da sua criação percebida como potencial ameaça futura ao dólar e tenham criado empresas multinacionais bem sucedidas, como por exemplo a Airbus, que ultrapassou a Boeing, sua competidora americana, os países europeus não têm conseguido produzir material de guerra multinacional, designadamente aviões de caça, mísseis, tanques e outro material militar, resolvendo essa falta de colaboração mútua fazendo compras maciças de material de guerra ao “amigo” americano.
Agora que os americanos, embalados pelo enorme privilégio de serem emissores de dólares, acabaram por acumular uma dívida comparável à de Portugal em percentagem do PIB quando a nossa dívida nacional era considerada lixo, querem aumenter as vendas do seu material militar aos seus “aliados” da NATO, inventando narrativas ridículas em paralelo com “bullying” descarado.
O Estado Social na Europa antecedeu o fim da guerra 1939-45. Já o chanceler Bismarck na Alemanha tomara no século XIX algumas medidas de protecção dos trabalhadores. Na Suécia o partido Social-Democrata formou governo pela primeira vez em 1920-21 reganhando as eleições ininterruptamente desde 1932 a 1973, tendo a partir dessa data alternado com outros partidos de direita. As lutas de classes na Europa foram existindo desde a revolução industrial. Os maiores avanços do Estado Social depois da guerra de 1939-45 explicam-se facilmente pela pressão da população saída de condições de vida muito duras durante a guerra.
Pensar que os políticos americanos tolerariam uma relação económica em que eles financiariam mesmo que indirectamente o Estado Social europeu não passa de uma anedota.
Do artigo “Guerra e Paz” de Miguel Sousa Tavares no Expresso de 2025.07.04 que merece ser lido na íntegra, destaco este parágrafo:
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Ao invés, a Europa que se reconstruiu no pós-guerra fê-lo com base numa crença completamente diferente. Os mais de 50 milhões de mortos na guerra, as cidades em ruínas e os países exangues impunham uma lição que a Europa assumiu: nunca mais. Nunca mais a guerra no continente europeu, nunca mais todas as energias e riqueza canalizadas para armas, mas sim para a reconstrução, a paz, a prosperidade e a justiça social. Assim nasceu a União Europeia e se reergueu uma Europa livre, de Berlim ao Atlântico. E assim se viveram 80 anos de paz, de bem-estar e de combate às desigualdades. Sob a protecção militar dos Estados Unidos e englobada na NATO é certo, mas cumprindo as suas obrigações na organização.
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2025-07-15
O Estado Social da Europa não é financiado pelos EUA
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2 comentários:
Excelente, a lição!
Inteiramente de acordo
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