No outro dia ao andar na Via do Infante (A22) no Algarve fiquei com a impressão que circulavam muito menos carros do que antes do estabelecimento das portagens. Essa impressão foi depois confirmada, por exemplo em artigo da revista do ACP de Abril de 2012. A A22 teve uma quebra de 48,4% no 4º trimestre de 2011 em relação a idêntico período de 2010. Outras ex-SCUTs (Sem CUsto para o Utilizador) tiveram quebras inferiores mas significativas, exemplos dados são 30,9% na A23, 29,6% na A24 e 18% na A25.
A situação fez-me pensar no risco que corremos de, depois de termos gasto provavelmente uma quantidade excessiva de dinheiro em estradas, chegarmos à situação ridícula e triste de “não termos dinheiro” para as usar, diminuindo a produtividade e a tão falada competitividade do país ao não resistir a cobrar uma receita extra aos utilizadores das estradas que já as pagaram várias vezes, como contribuintes do IRS, do IVA e sobretudo como pagadores do “Imposto sobre Produtos Petrolíferos”.
Se for difícil justificar a construção das ex-SCUTs, ainda será mais difícil justificar que se cobre aos utilizadores pelo seu uso pois ao fazê-lo diminui-se a utilização de um bem com potencialidade para melhorar a produtividade do país/região. O preceito de conceder a utilização de um bem a quem lhe dá mais valor e está disposto a pagar mais por ele fará sentido numa situação de escassez do bem, originando uma renda de congestionamento. Caso não haja congestionamento é irracional cobrar para seleccionar quem utiliza.
Nas casas de habitação observa-se uma situação semelhante. O dinheiro que emprestaram a Portugal, principalmente os Espanhóis mas também muito os Alemães serviu para as famílias Portuguesas comprarem o nosso território (o custo do terreno é a maior parte do custo das casas, o custo da construção não aumenta por aí além) bastante mais caro do que se não existissem empréstimos tão baratos. Gastámos assim muito mais dinheiro para comprar as nossas casas do que teríamos gasto se não nos tivessem emprestado tanto. Em princípio esse dinheiro foi para o bolso dos proprietários de terrenos que não o investiram em actividades produtivas em Portugal, dado o fraco crescimento da nossa economia. Com o aumento brutal do desemprego, devido à aplicação das medidas de austeridade (por nos termos endividado a construir estradas e casas) e às profecias auto-realizantes das agências de notação, os compradores de casas deixaram de conseguir pagar a prestação. Assim como ficámos com estradas sem carros vamos também ficar com casas sem pessoas, dando assim mais um sinal da incapacidade do pensamento económico dominante assegurar quer uma taxa de emprego razoável quer um mínimo de racionalidade na gestão dos recursos.
Este tema da existência de produção de um bem, ao mesmo tempo que existe uma parcela da população desprovida de meios para dele usufruir, é tratado com grande detalhe por Amartya Sen no seu livro “Poverty and Famines, An Essay on Entitlement and Deprivation”, um ensaio que embora trate de situações extremas de fome conduzindo à morte, designadamente a Grande Fome de Bengala em 1943, as fomes da Etiópia nos anos 70 do século passado, as secas e fomes no Sahel e as fomes no Bangladesh, tem muito interesse para a situação em que actualmente vivemos, ao mostrar que todas estas catástrofes resultam não de causas naturais mas de péssimas organizações económicas das sociedades em que ocorrem.
Na grande fome de Bengala, em que morreram mais de um milhão e meio de pessoas, Amartya Sen mostra que durante a crise a região de Bengala chegou a exportar arroz nela produzido, enquanto pessoas sem dinheiro para o comprar morriam à fome.
Uma das teses interessantes de Amartya Sen é que nas democracias não se morre à fome porque os governantes têm pressões fortes para não deixar morrer os seus eleitores. Que isto sirva de consolação às pessoas que se sentem um bocado cansadas dos defeitos dos regimes democráticos.