2020-07-26

Remover estátuas


Na sequência do assassínio do cidadão morte-americano George Floyd por um polícia no estado de Michigan, com completo à vontade em frente de telemóveis que filmaram a cena, tiveram lugar muitas manifestações nos E.U.A. e em muitas cidades doutros países incluindo Lisboa.

Desta vez as manifestações encaminharam-se para o derrube de variadas estátuas, nos EUA os alvos principais foram figuras importantes designadamente militares dos estados confederados do Sul, que declararam a secessão (1861-1865) por não aceitarem as leis de extinção da escravatura em todos os estados da federação da América do Norte.

Em Portugal a abolição da escravatura não provocou nenhuma guerra cilvil, a que tivemos no século XIX (1828-1834) foi entre absolutistas (D.Miguel) e liberais/constitucionalistas (D.PedroIV). Não tenho conhecimento de estátuas de D.Miguel que depois de perder a guerra foi para o exílio na Europa onde faleceu. Curiosamente, no concelho de Loures, em Stº António dos Cavaleiros existe uma praça com o nome de D.Miguel mas para o Google Maps é caso único.

Na Inglaterra, designadamente em Bristol, derrubaram e deitaram à água nas docas a estátua dum filantropo e benemérito da cidade cuja fortuna se devera ao comércio de escravos. Em Londres removeram estátua doutro traficante de escravos, e uma de Cecil Rhodes, defensor da supremacia dos “brancos”, foi retirada da universidade de Oxford.

Andei à procura de traficantes de escravos de nacionalidade portuguesa e um primo meu do Porto referiu-me o Conde de Ferreira. Existe um artigo sobre ele na Wikipédia, trata-se de Joaquim Ferreira dos Santos, 1º Conde de Ferreira  (Porto, 1782-1866), comerciante de escravos, empresário comercial e filantropo português, Par do reino em 1842, Conselheiro da rainha D.Maria II, com várias condecorações e comendas. O hospital psiquiátrico de Conde de Ferreira foi inaugurado em1883.

Quando eu vivia no Porto, até aos meus 10 anos, lembro-me de expressão coloquial “ainda vais parar ao Conde Ferreira” quando se fazia ou dizia algo mais amalucado mas nunca me referiram a origem da  maior parte do dinheiro da personagem. Mas, ou por desconhecimento ou por falta de activistas no Porto para esta causa, a estátua não foi perturbada.

Noutros sítios colocaram tinta vermelha em estátuas sem as remover. Foi o caso de Lisboa onde a escolhida foi a estátua do padre António Vieira (Lisboa 1608, Salvador da Bahia 1697) instalada em 2017 no largo Trindade Coelho, em frente da igreja de S.Roque.

 

Muita gente criticou a vandalização da estátua embora alguns tenham também criticado o simbolismo da mesma, com uma pretensa infantilização dos indios representados através de 3 crianças. A estátua foi seleccionada num concurso e embora eu não a ache extraordinária parece-me de interpretação simples: o padre António Vieira, um Jesuíta, exibe a cruz de Cristo na sua função de missionário, rodeado de crianças que provavelmente tem andado a catequisar, a ordem dos Jesuítas dedicava particular atenção à criação de colégios para ministrar uma educação com valores cristãos. O índios aparecem porque o padre lutou para que os índios do Brasil não fossem escravizados e o padre é objecto de críticas por não ter desenvolvido uma campanha equivalente para os africanos trazidos para o Brasil como escravos se bem que não tenha defendido a escravatura e tenha afirmado que os escravos tinham que ser tratados com humanidade. Também me parece mal que tenham vandalizado esta estátua que entretanto já foi restaurada.

Remover estátuas de espaços públicos de passagem, como praças, rotundas, jardins e semelhantes, não é “reescrever” a História, como é frequente dizer-se a propósito destes acontecimentos. A História não é uma descrição única do passado mas a perspectiva que cada sociedade num determinado momento tem desse passado, visto à luz do que então se conhece e dos valores dominantes nessa altura nessa sociedade. Nesse sentido é missão de cada geração de historiadores darem uma perspectiva actual do processo histórico. E com a mudança dos valores ao longo do tempo é natural que hajam  mudanças nos destaques reservados a figuras históricas.

As ex-colónias portuguesas devolveram algumas estátuas de colonizadores, cuja presença incomodava os ex-colonizados, como referi num post intitulado “World Land Grab” de 22/Mar/2010.

De Macau, na sequência da devolução da administração do território à China, devolveram a estátua do ex-governador Ferreira do Amaral que foi colocada no bairro da Encarnação como referi neste post “Estátuas coloniais ” de 23/Mar/2010.

Na revista NewYorker publicaram recentemente uma entrevista com a filósofa Susan Neiman, tendo como ponto de partida o livro dela publicado em 2019 intitulado “Learning from the Germans: Race and the Memory of Evil,” em que ela compara as formas como a Alemanha e os EUA confrontaram as partes negras do seu passado. Da entrevista destaco esta parte:
«
 The statues really need to go, first of all. And they’re going. It’s a symbolic act, but an important symbol. And the idea that the statues are about history or heritage is ridiculous. We don’t memorialize every piece of our heritage. We pick out what we want people to remember. Monuments are visible values. They portray the men and women who embodied the values that we want our community to share, that we want our children to learn. So they have to go. And hopefully that process should be a democratic and public one. They don’t all need to go into the harbor. Contextualization can be an option in some cases. It really needs to be decided case by case. But we have to acknowledge that we’re not upholding history, we’re upholding values, and those are not the values that we want in the twenty-first century.
»
e num registo mais ligeiro destaco ainda este truísmo: “Politicians always do things for political motives. I think that’s what makes them politicians.”

Ainda na NewYorker veio um artigo sobre a remoção duma estátua de Félix Djerzinski, bolchevista fundador da Cheka, polícia secreta soviética sucedida pela N.K.V.D. responsável pelas purgas estalinistas, sucedida pela K.G.B. dos romances de John Le Carré na Guerra Fria e finalmente sucedida pela F.S.B. O derrube da estátua acabou por ser inconsequente na actual situação pois Vladimir Putin, que foi funcionário do K.G.B., é por assim dizer um “descendente” do pensamento político de Félix Djerzinski.


2 comentários:

Dulce Amarante dos Santos disse...

Excelente texto. Já no Império romano ocorria a damnatio memoriae (a danação da memória), por algum antecessor. Derruba-se as estátuas, apagava-se as inscrições nos monumentos de pedra. Particularmente, penso que é uma idiotice porque a história não muda o passado, quer queiramos ou não. Mas compreendo a articulista que afirma a necessidade de reafirmar nossos valores... No período colonial, havia muitos comerciantes de escravos portugueses que faziam o tráfico triangular com a América Central, África e Brazil. Os dois grandes portos desse comércio era o Rio de Janeiro e Salvador (Bahia). O assunto escolhido é pertinente ao momento atual. Parabéns

Jaime Sanchiz disse...

Esto de remover estatuas no es algo nuevo.
Me viene a la cabeza la infinidad de estatuas de Lenin y Stalin retiradaas del espacio público de la misma Rusia tras el colapso de la URSS, o las estauas de Franco (no se por que malloritariamente a caballo) que imperaban en las principales plazas de las ciudades y pueblos españolas.
Y si saltamos de estatuas a simbolos, ya nos perdemos.
Hasta 1975 en todas las estaciones de metro de Madrid colgaban obligatoriamene dos cuadros: uno de Franco (jefe de estado) y otro de Jose Antonio (idéologo oficialmente reconocido aunque ninguneado a efectos reales).
Y para no hablar de crucifijos en escuelas públicas.
En resumen: nada nuevo creo.
Parabens.