2010-10-01

O Touro, a Lagosta e o templo Jain de Ranakpur

Há uns tempos, julgo que na sequência da proibição de touradas na Catalunha, apareceu mais uma petição para acabar com as touradas em Portugal, que desta vez assinei.

Entretanto no Janelas o JPB manifestou a intenção de lançar uma petição para acabar com a cozedura de lagostas vivas.

Na altura fazia muito calor e não senti forças para argumentar mas agora, que o tempo está mais ameno, decidi-me a abordar este tema.

Já agora manifesto que encontro qualidades nas touradas, sobretudo na sua versão Portuguesa, quer no toureio a cavalo quer na intervenção dos forcados. Acho fascinante a tensão do nervosismo do cavalo na citação do touro, a elegância e destreza dos movimentos de esquiva durante a investida e mesmo o gesto certeiro e seguro de espetar a farpa no dorso do animal. Toda aquela sequência de movimentos tem uma grande beleza, para não falar da adrenalina da presença do perigo. Parece-me que o espectáculo celebra o triunfo da destreza e da inteligência sobre a força bruta mas constato que associado a esse triunfo aparece a crueldade.

Quanto aos forcados não me parece que façam mal ao animal mas, se calhar, precisam que ele já esteja um bocado cansado pela sequência de ferros espetados durante o toureio a cavalo. Admiro a valentia dos forcados embora me pareça com pouco sentido. Às vezes penso que ainda mais do que a manifestação de valentia é a procura da solidariedade humana em situações de dificuldade, como este vídeo do Youtube tão bem ilustra:


O Michael Wood no programa “The story of India” dizia que, talvez como resultado da enorme violência que tem assolado muitas vezes o sub-continente, apareceram movimentos que pregavam a não-violência como o Jainismo, religião fundada pelo Mahavira.

Deixo aqui, para amenizar, uma imagem do interior belíssimo do templo Jain mais importante de Ranakpur,




uma floresta de colunas de mármore esculpidas todas de forma diferente, numa foto que retirei da Wikipédia sobre Ranakpur.

O Mahavira era bastante radical na sua renúncia à violência pelo que alguns discípulos mais zelosos usam uma gaze em frente da boca para evitar engolir algum insecto, varrem o chão à frente do seu caminho para evitar pisar algum pequeno animal que por aí esteja a passar e em casos mais extremos não se lavam, para não fazer mal aos parasitas. Claro que são estritamente vegetarianos.

Eu também gostaria de ser vegetariano mas acaba por ser pouco prático e limito-me a ter um consumo moderado de carne. Prefiro formas abstractas como os bifes, em que é difícil ver a relação entre o que se está a comer e o animal vivo. Ver um frango assado inteiro entristece-me vagamente, prefiro os cubos de carne de frango dos restaurantes chineses.

Mas a vida tem um princípio e um fim e tem sido natural que uma grande variedade de animais se alimente de outros pelo que o essencial desta discussão é sobre o sofrimento do animal e não propriamente sobre a sua morte.

Assim como existem gradações nos graus de vegetarianismo, também existem gradações na empatia com diversas formas de vida. Normalmente é mais fácil sentir empatia com os que nos são mais próximos do que com estranhos. Ou com os animais de estimação do que com os outros.

Atacar o argumento que quando se é contra as touradas também se deveria ser contra a cozedura de lagostas vivas é difícil por dois motivos:
- vem um bocado na tradição judaico-cristã singularizar os seres humanos face a todos os outros animais. Nós temos alma, eles não têm. Nós pensamos, eles não. Basicamente todos os animais se equivalem e estão ao nosso serviço, se queremos poupar o sofrimento aos touros porque não mostrar a mesma consideração com as lagostas?
- a outra dificuldade é a anti-elitista: ao argumentar que devemos ter mais consideração pelo touro do que pela lagosta, porque este tem um sistema nervoso mais desenvolvido poderemos ouvir que estamos a ser injustos para com a lagosta que não tem culpa de ser menos inteligente.

Sou muito alérgico a todo e qualquer método de medição de inteligência em que se atribui um número ao grau de inteligência de cada um. Se nem sequer uma coisa tão simples como a posição de um ponto num plano prescinde de dois números, como se pode tentar caracterizar uma coisa tão complexa como a inteligência com apenas um número, ainda por cima com apenas 3 algarismos?

Mas não tenho dúvidas que um touro está muito mais próximo de um ser humano do que uma lagosta e julgo que a tradição judaico-cristã exacerbou a diferença entre os homens e os outros animais, designadamente os mamíferos, bastante mais do que noutras culturas.

Neste sentido parece-me razoável que nos preocupemos primeiro com o sofrimento dos touros, deixando a preocupação com as lagostas para futuros mais longínquos.

Ao escrever posts é frequente aprender mais alguma coisa sobre o tema que estou a escrever. Este não foi excepção, aprendi que “lobster” é o que chamamos lavagante, enquanto a nossa lagosta se chama “rock lobster “ou “spiny lobster”. Também aprendi que este tema da matança das lagostas tem sido muito pensado, que se colocarmos a lagosta num ambiente gelado durante 15-20 minutos antes da fervura o animal fica anestesiado e não sofre na cozedura. Outra possibilidade é colocá-lo numa solução mais salgada, também 15 minutos antes da fervura.

Ainda outra hipótese é evitar consumir lagosta, o que poderá ajudar as finanças neste tempo de crise.

As fotos que tirei em Ranakpur ficaram fracas pelo que fecho com outra também da Wikipédia :


mostrando uma beleza deslumbrante que não é ensombrada pelo sofrimento.

3 comentários:

José Maria André disse...

Gostei muito deste tipo de redacção, elegante e simples. Achei as ilustrações fantásticas!

Quanto à abordagem, em vez de discutir os «direitos» do animal (que não reconheço, em sentido estrito), prefiro examinar a acção humana. Valoriza a vida? Contribui para tornar a natureza mais bela? Exprime respeito pelo valor da natureza e pela vida humana?

Curiosamente, a minha principal objecção às touradas reside no perigo para o toureiro: expor-se a um perigo tão directo talvez seja uma falta de consideração pela própria vida. E talvez haja um certo intuito mórbido em quem assiste, quando a atenção se prende com a possibilidade de o toureiro ser ferido ou ser morto.

A minha segunda crítica coincide com a do «post»: a crueldade. Também reconheço os méritos da tourada, mas pode fazer mal aos espectadores que o toureiro brinque com o sofrimento do touro, mesmo que não seja essa a intenção directa da faena e se trate apenas de um bicho.

Parabéns ao escritor e fotógrafo!

Mário Pereira disse...

Uma bela reflexão, mas que termina com um raciocínio discutível. Tem a certeza que a beleza deste monumento não foi "ensombrada pelo sofrimento"?
Se mesmo nos nossos dias quase não há construção de edifício em que não ocorram acidentes, quanto mais em épocas passadas...

jj.amarante disse...

Mário Pereira, um dia destes ao reler o texto que tinha escrito também pensei nisso, mas mesmo assim o sofrimento faz parte essencial da tourada enquanto aqui é, por assim dizer, um fenómeno colateral que pode ser minimizado por medidas sucessivas de segurança.